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A fábrica de arte em Jatiwangi
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Jatisura, Indonésia (2005 - atualmente)
Resumo: Em 2005, na Indonésia, em um pequeno vilarejo que já foi um dos principais centros de fabricação de telhas de barro do país, surgiu o Jatiwangi Art Factory (JaF). Fundado por moradores do povoado de Jatisura, este coletivo artístico, propôs entrelaçar procedimentos da arte contemporânea com práticas e imaginários locais. O ensaio explora o contexto de formação, trajetória e desdobramentos do JaF, destacando algumas de suas experiências artísticas mais emblemáticas, onde se destaca o envolvimento comunitário e o compromisso do grupo em valorizar a argila como símbolo da herança cultural da região.
Reconhecido desde o início do século 20 por sua expertise na fabricação de telhas de barro, Jatiwangi (distrito situado na região de Majalengka, na província de Java Ocidental, a quatro horas de Jacarta com cerca de 90.000 habitantes dispersos pelos 16 vilarejos que o constituem) era tido como um dos maiores polos produtores de telha artesanal do Sudeste Asiático. Esse cenário de protagonismo da indústria da argila, cuja distribuição sempre alcançou todo o país, encarou, contudo, muita mudança nos últimos tempos. Com o plano desenvolvimentista do governo de Suharto – no qual se acirrou o fluxo da urbanização, se acelerou o êxodo de moradores do campo para as cidades e se iniciou um processo de estímulo e de formação de polos industriais em áreas voltadas para a produção agrícola –, afetaram-se em boa medida os modos de vida nos vilarejos, bem como as condições ambientais do território como um todo. Já com a intensificação da política neoliberal que se deu a partir do final da década de 1990, em consonância com a crise econômica que assolava o país, o governo indonésio começou a atrair investidores para acelerar a consolidação de áreas industriais na região de Majalengka, o que apressou ainda mais o abalo da paisagem da área rural. Junto a isso, a práxis da fabricação artesanal de telha foi sendo substituída por indústrias estrangeiras de maior porte, já que o modelo corporativo se apropriou de produtores menores e assumiu a demanda de mercado. Além da indústria de telhado, chegavam também multinacionais ligadas à confecção de roupas e calçados que foram se instalando sobre os arrozais. Como resultado, o motor econômico, que sempre havia ficado a cargo de moradores locais e empresas familiares, foi sendo transferido aos sistemas ligados ao mercado externo e ao grande capital. Nesse ritmo de profissionalização, técnicas tradicionais como a do forno de azulejo, de fabricação de tijolo e outras foram trocadas pela produção de novos materiais, bem como pela lógica da mecanização – de modo que, nos dias de hoje, o distrito ainda conta com cerca de 150 fábricas manufatureiras ativas e sobreviventes, embora, ao redor delas, mais de 600 galpões esparramados pelo entorno se encontram vazios e desativados. Foi no intuito de debater os sintomas desses processos de transição – e de observar alguns dos impactos gerados na paisagem e no imaginário social da região de Jatiwangi – que se formou o chamado Jatiwangi art Factory (JaF), um coletivo artístico composto por alguns moradores a fim de habilitar um espaço de encontros para avaliar as transformações em curso e aproximar a arte contemporânea da cultura local. Concebida por Arief Yudi Rahman e seu irmão Ginggi S. Hasyim em 2005, a iniciativa se moldou a partir da estruturação de um espaço público, aberto ao convívio, adaptado no galpão de seus pais – donos de uma antiga e desocupada fábrica de telha. Foi nesse mesmo local que a dupla começou a organizar pequenos projetos de mostras, exibições de filmes e apresentações musicais. Com o tempo – e com o vínculo que se criou com as famílias do entorno da sede –, Arief estimulou amigos, músicos e artistas de outras localidades a conhecer a vizinhança a passar algumas semanas envolvidos com o cotidiano do bairro. Nesse modelo de trabalho, quem visitasse a localidade de Jatisura (pequeno vilarejo de Jatiwangi onde moravam) seria acolhido em casas da própria comunidade e se envolveria com a elaboração de uma proposta artística, cuja premissa era ser vinculada, material ou simbolicamente, à cultura de lá. Assim, dessas breves imersões de troca, estruturou-se o JaF Air, programa de residência do Jatiwangi art Factory, ativo até os dias de hoje, do qual também se desmembrou um festival de residência (Jatiwangi Residency Festival), realizado a cada dois anos. Desde que o Jatiwangi art Factory se formou, havia por parte de seus membros fundadores um claro posicionamento a favor de uma prática criativa − nas suas palavras, interventiva (Rahman, 2022) −, na qual a arte estaria alocada justo na convergência entre a ativação da participação pública e o aproveitamento de recursos locais. Tanto é que foi precisamente nessa intersecção que o coletivo defendeu a presença da práxis da terracota, por reconhecê-la como tradição cultural e como um possível elo entre ambas as dimensões. O barro sempre foi substância essencial à vida produtiva de Jatiwangi, assim como materialidade protagonista dos costumes locais, ainda que essa realidade perdesse espaço a cada dia. Buscando esse resgate pela interlocução com a produção artística contemporânea, o JaF centrou seu interesse no entorno da pesquisa da argila (prática essa cuja técnica, passada de geração a geração, era familiar à comunidade) a fim de resgatar e ressignificar seu caráter simbólico e de fazer uso de seu potencial de articulação social. Foi então que nasceu o Festival de Música de Cerâmica (ou Rampak Genteng, no idioma indonésio), evento que passou a dar nome uma orquestra de percussão, montada toda ela com instrumentos feitos em barro. A ideia surgiu do desdobramento das apresentações musicais que já vinham sendo coordenadas pelo JaF desde o início da formação do coletivo. Tedi Nurmanto, Andzar Agung Fauzan, Ahmad Thian Vultan, Muhammad Pipin Kaspin, Kiki Permana, Ika Yuliana e Tamyiz Ramadhan, habitantes da região, vinham se debruçando há algum tempo sobre a lida com o barro e se envolvendo com pesquisas voltadas para o testar como material para a confecção de instrumentos, bem como para provar diferentes sonoridades disparadas pelo impacto com a argila. Dessas experimentações, o projeto do Festival de Música de Cerâmica começou ganhar corpo e a ser modulado como uma atividade de congregação social e celebração que buscava resgatar a simbologia de práticas habitualmente exercidas no cotidiano da população que encaravam um processo de apagamento como práxis laboral. Realizado pela primeira vez em 2012, o Rampak Genteng se deu na praça da antiga Fábrica de Açúcar de Jatiwangi, própria da era da indústria açucareira firmada durante o período colonial holandês. Não à toa, o festival disparou bastante agitação. Montar uma orquestra com os habitantes de Jatiwangi – formando flautistas, percussionistas e cantores independentemente de conhecimentos prévios – exigia, contudo, um processo de instrução e envolvimento com a comunidade. Nos meses que antecederam a realização do festival, escolas abriram espaço em sala para que alunos modelassem o barro em instrumentos musicais; fábricas ainda ativas doaram fundos para a produção; outras delas assumiram a fabricação das telhas e a queima dos instrumentos recém-criados; simultaneamente aqueles moradores mais envolvidos com a preparação do evento (que atuavam como produtores, professores e até como maestros que guiariam a orquestra) responsabilizaram-se pela coordenação de oficinas musicais em diferentes bairros do povoado e arredores. Nesse fluxo de produção coletiva, viu-se toda uma comunidade envolvida em atividades de treino, de negociação, de preparo do barro, de produção de alimentos e organização de infraestrutura. Havia, ainda, aqueles que percorreram vila por vila do distrito, chamando a população à participação no festival, ou quem se reuniu para escrever as melodias que seriam tocadas no dia do evento. A primeira edição realizada em 2012 foi ainda marcada por um pronunciamento público. Em acordo com lideranças religiosas e administrativas, a abertura do festival se deu justamente com a leitura de uma promessa solene, no formato de juramento cujo texto fora escrito pela própria comunidade e proferido logo antes de a orquestra começar, na voz dos 1.500 moradores de Jatisura e dos povoados vizinhos que se reuniam para participar do evento. Em conversa com um dos moradores da região e também membro do JaF, Ismal Muntaha comentou que lhe chamou atenção o grau de envolvimento participativo alcançado naquele dia. Para o artista, foi interessante ver aqueles moradores, entre os quais havia professores escolares, alunos, mães de família, funcionários do poder público, líderes muçulmanos, polícia local, soldados da força armada e até contrabandistas já conhecidos da região, todos juntos, fazendo um mesmo voto em comum. “Com a graça do Deus Todo-poderoso...”, habitantes de cada um dos 16 vilarejos do entorno entoavam aquele juramento, prometendo “respeitar as obras de seus antepassados e sempre criar, inovar e transmitir esses saberes às futuras gerações; se preparar, o melhor possível, para desenvolver o progresso de Jatiwangi no futuro; manter a cultura do barro, cultivando-a com dignidade, criatividade e respeito às normas ambientais”; bem como “manter o conforto, a paz e a segurança, baseados no amor e no respeito mútuo” (JaF, s.d.). Foi então que a práxis da terracota começou a emergir não só como um repertório técnico ou como forma de ativação econômica por meio de recursos locais, mas como uma narrativa-guia para a reorganização do imaginário social. Foi então que o barro passou a ser alocado como um elemento simbólico capaz de representar aquela consciência coletiva identitária, assumindo posto de recurso, de materialidade de fácil acesso, bem como um signo para se pensar prática e conceitualmente sobre as noções de trabalho, território e até de sua dimensão ambiental. Frente ao rito impulsionado no dia de abertura, o barro e, em consequência, a cerâmica, afirmavam-se também como saberes sagrados cujo conhecimento culturalmente acumulado passava a agir como um ferramental de rearticulação comunitária. Esse vetor ritualístico e de celebração facilitava abertura e adesão à integração social. Ele sempre teve ingerência nas práticas sociais de Jatiwangi. Ele sempre esteve presente nos encontros de oração coletiva mobilizados no vilarejo; nos cantos que acompanhavam o plantio do arroz; nos rituais sonoros de prevenção de pragas; nas preces sobre o conto do rosário feito em barro na hora da colheita; nos teatros de sombra que recuperavam o mahabharata (livro sagrado do hinduísmo); bem como junto à tradição islâmica javanesa cuja reza despertava o povoado, a cada nascer do sol, nas manhãs do mês do Ramadã. Imbricada no cotidiano, a gestualidade simbólica e espiritual era parte integrante daquele corpo social, ainda que se visse no embate entre sua perda de espaço junto aos hábitos contemporâneos e seus próprios esforços de resistência. A primeira edição do festival reuniu cerca de 1.500 pessoas entre habitantes locais e moradores de áreas vizinhas. De caráter ainda essencialmente local, a prática foi crescendo em escala e impacto dali em diante. Desde então, o Rampak Genteng foi incluído na agenda da programação oficial do vilarejo, tornando-se um evento trienal. Ao atrair cada vez mais a participação de habitantes das aldeias vizinhas na composição da orquestra, o festival garantiu maior alcance, vendo seu corpo de músicos aumentar. A segunda edição que se deu em 2015 chegou a reunir 5.000 participantes. Na edição de 2018, somaram-se mais de 11.000 pessoas. E assim, em poucos anos, as músicas que haviam sido escritas e compostas para a orquestra começaram a ser “consideradas folclore” pelos habitantes da região (Samboh, 2016). "Certa tarde, em Jatiwangi, centenas de pessoas chegaram em um campo vazio. Alguns vinham de moto, outros de ônibus, outros de caminhão. Em menos de uma hora, aquele campo recebeu cerca de 5.000 pessoas. Como se já soubessem o que fazer, aquelas 5.000 pessoas formaram algumas filas e se posicionaram aguardando instruções. Três jovens subiram em uma espécie de palco erguido junto às filas recém-formadas. Cada um pegou seu instrumento e cumprimentou a multidão a sua frente, enquanto acertava a afinação. Em seguida, os três jovens começaram a mencionar o nome dos povoados de cada grupo de pessoas que chegava; citavam o nome das aldeias; o nome das escolas ou o nome da própria comunidade [...]. Era como se esses três jovens conhecessem cada uma das 5.000 pessoas que estavam ali naquele momento. Pensei, como é possível conhecer tanta gente uma a uma? Os três jovens no palco nem se apresentaram; possivelmente porque todos já deviam saber quem eram. Cada um deles começou a conduzir as pessoas a sua frente, tornando-se o maestro que guiaria aquele grupo. A música começou. Metade da multidão tocava percussão. Tocaram canções que eram estranhas àqueles que não estavam tocando. A música que escutávamos tinha sido composta por eles mesmos" (Samboh, 2016) Nesse contexto, vale mencionar o peso que a música já ganhava em meio às atividades do JaF, ainda que seus membros tivessem vínculo mais próximo com o campo das artes visuais. Para Ginggi e Arief, alocar a linguagem musical como expressão centralizadora, haja vista sua permeabilidade cultural, era uma forma de buscar um meio de integração coletiva de fácil acesso que pudesse disparar engajamento com menor exigência de mediação. Illa Syukrillah (2022), habitante do vilarejo e atualmente membro do JaF, comentou a influência que a iniciativa do festival teve na formação de uma cultura musical no contexto de Jatisura, antes inexistente como tradição. O Rampak Genteng, que havia surgido a partir de um pequeno grupo de moradores interessados na investigação sonora e material sobre instrumentos feitos em barro, também se desmembrou em outros projetos de experimentação e de estudo musical, o que fez com que, aos poucos a região se conformasse como um polo de pesquisa voltado para pensar possibilidades de desenvolvimento musical e criativo com base no uso da argila como recurso. Essa ativação deu margem à formação de um consórcio de música de cerâmica, o chamado Konsorsiumusikeramik, responsável por destinar apoio a músicos e artistas locais, nacionais e estrangeiros, com o objetivo de promover, distribuir e criar cultura musical baseada na prática da cerâmica (JaF, s.d.). Paralelamente à consolidação do Festival de Música de Cerâmica em nível regional, o programa de residência artística do JaF seguiu recebendo artistas nacionais e estrangeiros que foram somando outros olhares sobre Jatiwangi, ampliando o escopo de pesquisa sobre a cultura local e propondo outros exercícios de cruzamento do pensamento de arte contemporânea com a prática da terracota. Chih-Hua Huang, artista de Taiwan ligada ao coletivo Suaveart, buscou repensar a produção da telha para além da construção de telhados, testando suas possibilidades como elemento arquitetônico estrutural. Paulo Nazaré propôs um intercâmbio entre culinárias, léxicos e trânsitos antepassados ainda presentes na organização identitária de Jatisura. Grace Samboh e Togar (Julian Abraham), curadora e artista indonésios, respectivamente, criaram a chamada Copa de Jatiwangi, uma competição de fisiculturismo, definida por voto popular, cujos concorrentes eram trabalhadores das fábricas locais fazendo o levantamento das pilhas de telha que já carregavam diariamente. Durante esse período, começamos a discutir a ideia de uma competição de fisiculturismo com o pessoal do JaF e com os proprietários das fábricas, que logo se mostraram interessados em apoiar o projeto [...]. A participação no concurso estava aberta apenas aos trabalhadores das fábricas de telhas, cuja força e músculos eram resultantes de um trabalho físico extenuante exercido dia a dia. O prêmio da Copa era de 10.000.000 IDR, o que seria o equivalente a seis vezes o salário médio mensal dos trabalhadores. [...] Vários proprietários de fábricas com quem estávamos em diálogo ajudaram a convencer outros proprietários a apoiar e a enviar seus funcionários como participantes, oferecendo a eles uma taxa de registro de 100.000 IDR a cada um (Abraham, Samboh, s.d.). A ação, resultante da imersão de um ano em que Grace Samboh e Togar permaneceram em Jatisura, teve suas repercussões após o término da residência. Isso porque, desde a primeira edição do concurso, realizada em 2015, a competição ganhou mais popularidade que o previsto. O evento envolveu boa parte das fábricas locais, ativou um movimento de interação entre funcionários e engajou um público de moradores que começou a torcer pelo seu funcionário, pelo seu familiar, pelo seu conhecido, ou por aquele que o cativasse por carisma ou força muscular. A primeira edição da Copa Jatiwangi se deu em 11 de agosto, data que marcava o início das celebrações anuais do Dia da Independência da Indonésia. Samboh e Togar comentaram intencionalidade na definição da data. Para a dupla, relacionar o concurso com esse dia histórico ajudaria a estabelecer um marco na memória, de modo que a Copa de Jatiwangi pudesse, eventualmente, ser abraçada pela comunidade. Por fim, a Copa tornou-se um marco. “Quando o projeto começou, não imaginávamos que ele continuaria ativo por tanto tempo” (Abraham, Samboh, s.d.). Mesmo após a saída dos artistas do vilarejo, a Copa seguiu ocorrendo anualmente, sendo autogerida pelos funcionários das fábricas e financiada pelos proprietários. Até 2019, ela já tinha contado com cinco edições. “Depois de anunciar os vencedores da Copa de 2015, Edi Malik Azis, proprietário da pequena indústria de telhas em que trabalhava o primeiro vencedor, anunciou que sua fábrica PG Edy Jaya sediaria a Copa no ano seguinte” (Abraham, Samboh, s.d.). A partir de então, a Copa manteve essa tradição e segue sendo realizada na fábrica em que trabalha ou trabalhava o vencedor do ano anterior. No relato dos artistas, comenta-se que não se imaginava que o evento começaria a ser televisionado nacionalmente e que sua popularidade tornaria boa parte dos seus competidores “heróis e ídolos locais” (Abraham, Samboh, s.d.). Materialmente, a propositiva resultou (para além dos registros de fotografia e vídeos que documentaram o concurso) em uma série de calendários com a imagem dos competidores ilustrando cada mês do ano. De modo geral, em decorrência das atividades que passaram a ser detonadas pela atuação do Jatiwangi art Factory ao longo do tempo, foi se estruturando pelos vilarejos de Jatiwangi uma programação cultural própria e diversa, representativa de aspectos muito particulares que identificavam a localidade, sua memória e o dia a dia local. Foi então que passou a formar uma rede abrangente e capilar de articulação social que, além de alcançar os vilarejos do entorno, começou a atrair atenção de gestores e moradores do resto do estado. Além do mais, o envolvimento que o JaF passou a ter no cotidiano da comunidade o colocou como braço de apoio da administração pública do vilarejo, em especial para a organização de eventos e cerimônias públicas. Ao configurar-se como uma espécie de órgão institucional artístico em uma região desabastecida de qualquer infraestrutura formal ligada à cultura, à medida que os irmãos Ginggi Hasyim e Arief Rahman foram firmando laços e garantindo reconhecimento local, o JaF foi expandindo sua atuação e embarcando também na implementação de uma rádio comunitária (JaF Radio), de um programa televisivo (Jaf TV), começou a produzir festivais anuais de vídeo (Village Video Festival), ao mesmo tempo que consolidou um programa de fórum público (Forum 27an), em que membros da sociedade, professores, agricultores, operários de fábricas, administradores municipais e artistas passaram a se encontrar mensalmente para discutir tópicos de interesse comum. Frente à ampliação dessa agenda, outros moradores foram se incorporando à formação do coletivo, de modo que, se em 2005 a iniciativa era conduzida pela dupla de Ginggi e Arief, pode-se dizer que, nos dias de hoje, ela tem pelo menos 15 membros fixos (entre artistas, musicistas, videomakers, designers e locutores de rádio), ainda que, atualmente, o grupo de colaboradores informais conte com uma equipe de mais de 40 pessoas. * * * Com o setor da construção civil crescendo em grande escala na região de Jatiwangi; com um tanto de corporações estrangeiras instalando-se sem muita dificuldade sobre áreas de matas nativas; e com centenas de hectares de arrozais virando, aos poucos, fábricas têxteis – fator esse que estimulou até a construção do Aeroporto Internacional de Kertajati (o segundo maior da província de Java Ocidental, recentemente concluído, cujo efeito foi uma nova dimensão de tráfego aéreo e rodoviário no entorno das vilas rurais), aquela localidade tornava-se, há tempos, um ponto estratégico para a industrialização. Jatiwangi situava-se junto a dois grandes portos comerciais, apresentava preços de terra muito inferiores em comparação às áreas suburbanas de Jacarta e ainda atraía empresas interessadas em sua flexibilidade regulatória cuja exigência de salários e direitos permitia contratações isentas de custos de seguros trabalhistas exigidos em outras partes da Indonésia (Samboh, 2016). Frente a um cenário que vinha sendo pressionado pela industrialização e estruturado pela precarização do trabalho, os representantes do Jatiwangi Art Factory, mesmo na sua vinculação próxima com órgãos executivos e administrativos do setor público, evitaram um posicionamento de oposição explícita a esse vetor desenvolvimentista que era o carro-chefe do plano gestor. O peso da ingerência e proximidade que o coletivo adquiriu sobre as instâncias de articulação comunitária havia, desde sua formação, lhe garantido uma relação bastante próxima com representantes do poder público. Não só com a gestão administrativa do subdistrito de Jatisura ou do distrito de Jatiwangi (Ginggi, fundador do JaF, já havia sido subprefeito do vilarejo de Jatisura), como também com executivos da região do estado de Majalengka. Ainda assim, não houve por parte do JaF pronunciamentos diretos contra as políticas públicas de incentivo à ampliação do parque industrial ou que tentassem desacelerar o estímulo à atração dos empreendimentos. Para Ismal Muntaha, atual membro do JaF, esse posicionamento diplomático era uma conduta consciente. Para muitos vizinhos, moradores e companheiros nossos, esse processo intenso de urbanização que nosso vilarejo atravessa, é muitas vezes compreendido como um impulso de oportunidades e como principal alternativa de reparação econômica. E para nós, ainda que estivéssemos assistindo a uma conduta de impactos constantes e até irremediáveis no ecossistema local, sempre foi importante manter aberto o diálogo com os representantes públicos, empresariais e com os habitantes diretamente envolvidos com esses setores. O que fez com que nós, ainda que pessoalmente estivéssemos contra essas políticas do Estado, passássemos a avaliar outras maneiras de rebater essa lógica que já estava em curso (Muntaha, 2021). Foi em 2019 que o JaF intensificou seu diálogo com o governo do estado de Majalengka. A aproximação tinha como objetivo a apresentação de uma proposta, por eles idealizada, em defesa do reconhecimento da práxis cultural da terracota no contexto distrital de Jatiwangi. Em contato com representantes do setor de planejamento, o coletivo propôs a implementação de um programa intitulado Terracota City – projeto que tinha como finalidade a obtenção do apoio estatal para que a localidade de Jatiwangi pudesse estabelecer-se como um polo referencial de estudo e de inovação da produção de argila. A ideia posta em mesa previa um cronograma de planejamento para os próximos 20 anos, a partir do qual seria estruturada uma demanda de mercado para a produção da terracota – o que colocava a instituição governamental como apoiadora direta de um ecossistema de economia criativa, a partir de regulamentos de proteção às ditas fábricas tradicionais de argila. Na prática, isso significava uma delimitação conceitual das políticas de financiamento público, na qual estariam previstos o apoio à atividade fabril artesanal, a atração de novos públicos consumidores e até a determinação do uso de elementos de terracota em edifícios públicos e em mobiliários urbanos (Yusmanto, s.d., p. 4). Para reforçar a visibilidade do projeto, JaF também atrelou a proposta à Ceramic Biennale, evento nacional do qual passaram a participar artistas, designers, funcionários das fábricas, arquitetos e ceramistas interessados em colaborar com a experimentação dessa nova prática artesanal e a formar uma rede de reativação da cultura manufatureira não só ligada à produção de telhas, como também de diferentes peças cerâmicas, louças, mobiliários e estruturas arquitetônicas feitas em barro. Por fim, assinado como política pública regional, o governo incluiu o projeto Terracota City junto ao documento do plano diretor do governo de Majalengka e emitiu um mandado para que as instituições estatais se comprometessem a usar produtos de terracota oriundos da região. Na verdade, o poder público não só começou a apoiar a proposta, como passou a vê-la como lucrativa para o desenvolvimento econômico dos setores do comércio e do turismo. Quer dizer, na compreensão de Ridwan Kamil, governador de Java Ocidental, “o projeto ampliaria o escopo produtivo da argila” e ainda colocaria a localidade de Jatiwangi como um possível “símbolo identitário de Majalengka” (Siangian, Muntaha, s.d.). Na concepção de Yulia Lukito e Rifandi Nugroho (2021), pesquisadores do Departamento de Arquitetura da Faculdade de Engenharia da Universitas Indonesia, o que os representantes do JaF estavam fazendo era resgatar o valor da memória ligada às fábricas de telhas pela ação da orquestra (como performance mobilizada sustentada coletivamente) e reforçar a potência da articulação desse repertório prático e simbólico, diretamente impactado pelo plano do governo de Majalengka, cujo apoio ao setor coorporativo e industrial vinha suprimindo o amparo e a proteção à produção e à cultura local (p. 20). De acordo com os pesquisadores, o festival Rampak Genteng, que anteriormente era tido como uma celebração musical e como um primeiro impulso de reconexão com a matéria do barro, começou a se efetivar como uma estratégia mais ampla de preservação histórica e cultural (p. 30). A revitalização da lida com recursos locais passava aos poucos a ser reconsiderada alternativa de trabalho e renda – e até marco identitário coletivo. Independente disso ou não, na visão do poder público a inovação da cultura da fábrica de telhas tornava-se uma nova possibilidade de atração turística, de marketing político e capital econômico. É interessante observar que a implementação da proposta do Terracota City não só angariou apoio para o reconhecimento patrimonial imaterial dos saberes da cultura cerâmica na região, como viabilizou diálogos com o Departamento Nacional de Assuntos Fundiários, ligado ao setor do meio ambiente. De acordo com o levantamento feito pelo BKP: A Land Study Agency (laboratório de estudos artísticos criado em Jatiwangi, com ênfase em práticas especulativas sobre paisagens culturais e questões fundiárias, formado em colaboração com as atividades do JaF), a institucionalização do programa acabou negociando a implementação de novas regras de mineração que prestassem atenção ao discurso ecológico (Yusmanto, s.d., p. 4), bem como o levantamento de pautas ligadas ao cuidado com a terra, tais como resíduos, poluição e equilíbrio ecológico do solo (Siagian, Muntaha, s.d.). Dessa maneira, o Terracota City firmou-se como um programa de caráter interdisciplinar idealizado por um coletivo artístico que sobrepunha inter-relações entre os setores públicos de modo transversal. Além do mais, dessa mesma articulação política trazida à tona pela aprovação do Terracota City, desmembraram-se, pelo próprio JaF, outros projetos de cruzamento entre a prática artística e movimentos de proteção ao ecossistema local. Um exemplo foi o trabalho intitulado Perhutana que consistiu na obtenção de uma área de terra, na extensão de oito hectares, destinada à venda por metragem (venda essa, em grande medida, destinada a colecionadores da arte) cujo intuito era impulsionar o crescimento de uma floresta secundária, como área de reserva natural. Em matéria publicada no jornal regional Sinarpagi News, Pandu Rahadian, membro do JaF, explicou que a floresta que começava a ser cultivada era uma tentativa de dar garantias, a longo prazo, de áreas verdes em Jatiwangi, protegidas da expansão industrial (Nugraha, 2022), em grande medida, financiada por atores do meio artístico. A venda de parcelas do terreno, que segue em curso até os dias de hoje, prevê a entrega de um comprovante de compra feito no formato de um tijolo de terra, fabricado na localidade, além de um certificado nft e uma placa personalizada cravada in loco, atestando o nome do comprador.
imagens ©Jatiwangiartfactory
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