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ZL Vórtice no Museu da Casa Brasileira: negociações em espaços públicos
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Jardim Pantanal, Zona Leste (2015-atualemente)

“Urbanismo Ecológico”, exposição aberta entre outubro de 2020 e junho de 2021, no Museu da Casa Brasileira, centro de referência voltado à arquitetura e ao design, reuniu diferentes iniciativas de urbanismo interessadas em testar soluções de recuperação socioambiental em áreas de impacto no entorno dos grandes centros. Com curadoria de Marina Correia e Fabiana Araújo, o projeto resultou de uma parceria entre o museu e a Faculdade de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade de Harvard. Partindo do livro Urbanismo Ecológico na América Latina, organizado por Mohsen Mostafavi e Gareth Doherty, a mostra trouxe um mapeamento de soluções a fins de minimizar os sintomas de dilatação das metrópoles que vem desestabilizando os ecossistemas locais. No espaço expositivo, via-se um conjunto de anotações e registros visuais de projetos ativados mundo afora. Quem transitou pelo ambiente, se deparou com uma série de experimentações que descreviam desde métodos de plantio e cultivo na Bacia do Vale do México, sistemas de coleta de água na região árida do Atacama, programas sociais ativados junto à comunidade da Favela do Sapé, até intervenções urbanas e ambientais do projeto ZL Vórtice, junto às várzeas do rio Tietê. Para pensar sobre a proposta da exposição em um diálogo específico com o con-texto de São Paulo e propor uma reflexão sobre a intersecção que iniciativas desse tipo estabelecem com o campo da arte, trago o caso ZL Vórtice como foco da discussão. O projeto surge na periferia da Zona Leste de São Paulo, no bairro Jardim Pantanal, zona crítica da capital que evidencia efeitos do processo histórico da sua urbanização. Como contextualização, vale lembrar que a cidade de São Paulo, hoje a maior área urbana do país, formou-se entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí. De lá, cresceu até ultrapassar as margens dos rios Pinheiros e Tietê. Com sua modernização, alte-rou drasticamente sua relação com a hidrografia do entorno. Se antes seus córregos e afluentes permitiam abastecimento, com o tempo, eles foram limitando sua expansão. E assim, a cidade foi mutilando seus rios, achatando suas curvas, reduzindo suas áreas de margens, afundando seus leitos e soterrando trechos abaixo de avenidas que abriam espaço para a soberania do fluxo rodoviário. A canalização dos cursos d’água foi a principal resposta do poder público para administrar o avanço e predomínio da área urbana. Nos dias atuais, grande parte do perímetro paulistano revela rios imergidos em valas de concreto, em um gesto de retificação que tenta impedir o avanço da água em horas de chuva ou de cheia. Mas os chamados pôlderes – modelo de engenharia de muros de contenção de enchentes que apartam radicalmente o rio da cidade – vem desencadeando desequilíbrios naturais numa escala ainda maior. O Jardim Pantanal é hoje uma das poucas áreas ainda não canalizadas do Tietê no município de São Paulo. Com mais de 200.000 habitantes, o bairro constituiu-se em meio às várzeas do rio. E como consequência, moradores de lá encaram os piores cenários de alagamentos da periferia metropolitana, convivendo com a expansão cíclica dos rios, com o retorno do esgoto e a mobilidade restrita. É lá que tomou corpo o projeto ZL Vórtice. Nascido em 2015, de caráter experimental e colaborativo, ele tem realizado estudos sobre o território para pensar projetos que contribuam tanto com as condições habitacionais como com a preservação ambiental da região. Ainda destituído da infraestrutura de diques de contenção de enchentes, o Pantanal anuncia um potencial para se discutir, junto ao poder público, modos alternativos de intervenção que não a tradicional polderização.O modelo de trabalho de ZL Vórtice aproxima pesquisadores, arquitetos, engenheiros, artistas e moradores. Coordenado por Nelson Brissac, filósofo, curador e idealizador do projeto Arte Cidade – programa emblemático de intervenções no espaço público –, o projeto cruza instâncias de investigação de campo, revisões cartográficas e adaptações de sistemas de monitoramentos da bacia hidrográfica com oficinas, workshops e seminários que unem instituições públicas e privadas com a comunidade local. Em parceria com a Associação dos Moradores do Jardim Pantanal (AMOJAP), estabeleceu pontes de diálogo com setores do órgão público, tais como a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa) e a Secretaria de Estado de Infraestrutura e Meio Ambiente (SIMA). Ao longo dos anos, a reunião desses diferentes agentes sociais levou-os a dese-nhar um plano de ação para melhorar as condições de habitação no local. O plano foi apresentado ao poder público e nele estava incluída a elaboração de galerias drenantes, de wetlands construídos3, de um sistema de contenção de margens de córregos e de monitoramento hidrológico e geomorfológico do Pantanal. Levantamentos topográficos e expedições de campo realizados junto com os moradores também haviam permitido o reconhecimento dos principais focos de alagamento. Assim, contemplaram também no plano a instalação de um calçamento em concreto com canais de drenagem para absorção e infiltração da água da chuva. A nova calçada já estava começando a ser projetada pela artista Regina Silveira em parceria com Rafael Pillegi, ligado ao Laboratório de Microestrutura e Ecoeficiência da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Definições estéticas e estratégias de fabricação, implantação e manutenção da calçada estavam sendo desenhadas em workshops junto com a comunidade. Mais do que pensar em uma única solução resolutiva, percebe-se no plano apre-sentado a convergência de alternativas integradas, desencadeadas a partir de uma compreensão sistêmica e contingente do território. Contudo, o plano levado por ZL Vórtice ao Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO), gerenciado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (CBH-AT), foi ina-bilitado por não demonstrar “integração com o projeto já existente para a área”, em re-ferência à implementação, ainda em curso, do sistema de pôlderes no local. A liberação de recursos tornou-se possível apenas posteriormente, com editais da cultura – setor onde já se consagraram produções de caráter aberto, processual e interdisciplinar. Para pleitear a liberação de recursos, ZL Vórtice enfatizou a instalação das calçadas permeáveis como foco do projeto. Com participação ativa de uma artista de relevância nacional, com larga trajetória de atuação no espaço público, o calçamento (e suas faculdades tanto técnicas como estéticas), ao embaralhar o campo da arte com o da engenharia, adequava-se às premissas de direcionamento orçamentário do setor. E para não abdicar das outras estratégias planejadas, o projeto, além da fabricação da calçada, prepararia o terreno para concretizá-las futuramente. Assim, previu a demarcação in loco para a implementação da área de wetlands, bem como a promoção de programações socioeducativas e a montagem de um espaço de trabalho onde as so-luções e tecnologias já esboçadas poderão ser discutidas, prototipadas, aperfeiçoadas e testadas com a comunidade. Para facilitar uma visão sistêmica desse laboratório de campo disseminado pelas ruas do Jardim Pantanal, o projeto ainda irá organizar um roteiro de visitação às ações ativadas pelo bairro. Foi assim que estudos voltados a criar ferramentas práticas de compreensão das dinâmicas das áreas de várzea e do manejo do sistema hídrico no bairro Pantanal consolidaram-se na chave de projetos culturais. Agora, o vetor artístico já presente nas atividades de ZL Vórtice posicionava-se como a ponta de lança para garantir sua conti-nuidade, apresentar procedimentos e driblar restrições. No contexto brasileiro, o racionalismo técnico-burocrático das instâncias da administração pública evidencia resistência na assimilação de projetos experimentais alternativos às soluções tecnológicas tradicionais. E isso demonstra falência há algum tempo. Luis Orsini, engenheiro e pesquisador do Centro Tecnológico de Hidráu-lica PoliUsp, parceiro do projeto no Pantanal, entende que muitos planejamentos urbanos fracassam pela falta de conhecimento territorial específico. Ao buscar a delimitação prévia e taxativa de soluções, desconsideram exercícios abertos e especulativos, visões interdisciplinares e a participação social, seja em etapas de análise como de proposição. Para Orsini, o trabalho do engenheiro ainda carece da incorpo-ração de procedimentos dialógicos integrados com as comunidades envolvidas. “Até pouco tempo atrás, engenheiros chegavam com a solução pronta e o poder público acatava. Na melhor das hipóteses, a interlocução com a sociedade implicava apenas em prestar satisfações sobre aquilo que era realizado”. Essa postura tecnocrática, promulgada modernidade afora, acostumou-se a não incorporar qualquer vocação local em instâncias de análise territorial. Já no campo da arte, metodologias colaborativas vêm aparecendo com força há algum tempo. Artistas envolvidos em projetos como ZL Vórtice, que colocam seu trabalho em meio a instâncias de integração social e espacial, passam a conceber um local menos como um reservatório de material formal ou representacional disponível e mais como um espaço no qual a ação pode ser constituída e reconstituída continuamente. Grant Kester (2011), teórico atento a projetos artísticos comunitários, indica que práticas dessa natureza, em vez de transmitir um conteúdo preexistente, giram em torno de uma experiência de modelagem recíproca. E assim, o que essas práticas nos apontam são esforços de descentralização. Por emergirem de interfaces coletivas, deslocam o lócus da produção criativa da ideação individual do artista para uma troca indeterminada, entre múltiplos interlocutores. Kester também resgata o pensamento do antropólogo James C. Scott (1999), que faz uso do conceito grego métis para lembrar o valor do conhecimento “embutido na experiência local”. Diferente da noção de episteme, enquanto conhecimento “genérico”, “repetível” e “codificável”, tal como a techne ou o know-how técnico, métisimplicaria uma forma de conhecimento enraizado nas condições específicas de um determinado contexto e na sabedoria agregada daqueles que ali vivem ao longo do tempo. É desse modo que projetos que aportam perspectivas técnicas em diálogo com saberes empíricos, acionam uma crítica epistemológica (KESTER, 2011, p. 145) ao indagar quais formas de conhecimento são apropriadas ou necessárias para um determinado lugar, e reivindicam o direito de falar e de agir, mesmo enquanto contra-ponto às deliberações de autoridades.A complementariedade entre métis e techne, na contramão da conduta tecnocrática e da abstração instrumental de planejamentos estatais, é parte central e constituinte tanto de ZL Vórtice, como de outras iniciativas presentes na mostra “Urbanismo Ecoló-gico” (2020-2021). E um dos fatores de maior vigor da proposta expositiva foi justa-mente a sinalização da potência dessa correlação de óticas, ativadas territorialmente. É claro que, enquanto síntese de um mapeamento, a mostra impossibilitava um contado próximo com o universo de trocas de conhecimentos, de divergências discursivas, de receios, avanços, travas e desafios implicados em cada um dos projetos ali presentes – universo esse tão caro para qualquer análise crítica. Motivada pelo lançamento do livro que leva o mesmo nome, e seguindo seus fundamentos, “Urbanismo Ecológico” (2020-2021) respondia a uma função de catalogação, comprometida com um olhar sistêmico e quantitativo de casos dispersos geograficamente, o que inviabilizava um aprofundamento sobre as metodologias e procedimentos aplicados. Ainda assim, a mostra atuou como uma importante sinalizadora. Permitiu ao público frequentador o reconhecimento de modelos de trabalho que ampliam as instâncias de negociações interdisciplinares entre setores e que se dão no amálgama de interações coletivas. Assim, possibilitou o compartilhamento de trabalhos capazes de problematizar o regimento de políticas públicas, ainda que esse movimento seja marcado pelo dissenso. No campo da arte, a natureza instrumental que caracteriza esses projetos instaura receio por quem prega um distanciamento crítico entre a arte e a resolução prática das insuficiências contemporâneas. O debate não é recente, mas ganha novos con-tornos quando se trata da atuação no espaço público – ainda mais nos dias atuais, já que trabalhos desse tipo são sintomáticos de uma época que já decretou crise aos modelos disciplinares. E nesse fluxo de renegociação das condições de autonomia, vale observar o modo como o atributo artístico vem agenciando espaços que ultrapassam suas fronteiras. Se a modernidade calibrou a potência da disfuncionalidade do trabalho artístico, não deixa de ser curioso observar como os tempos atuais tem se aproximado dessa suposta inutilidade, convertendo-a em ferramenta operativa de intervenção.

Resumo: Urbanismo Ecológico”, exposição realizada no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, reuniu um mapeamento de projetos de urbanismo interessados em expe-rimentar alternativas para áreas de impacto socioambiental. ZL Vórtice, projeto situ-ado nas áreas de várzea do rio Tietê, na periferia paulistana, foi um dos casos apre-sentados. Com o intuito de aproximar a proposta expositiva do contexto territorial de São Paulo especificamente e observar o diálogo que iniciativas deste tipo estabele-cem com o campo da arte, o texto lança um olhar sobre a atuação de ZL Vórtice para refletir sobre instâncias de agenciamentos interdisciplinares da arte nos dias atuais.
 

imagens: ©ZLVórticeWordPress

Publicação: Fabres, P. M. (2021). ZL Vórtice no Museu da Casa Brasileira: negociações em espaços públicos. PORTO ARTE: Revista De Artes Visuais (Qualis A2), 26(46), 1–8. https://doi.org/10.22456/2179-8001.118587

 

Bibliografia

 

KESTER, Grant. The One and the Many: Contemporary Collaborative Art in a Global Con-text. San Diego: Duke University Press, 2011. PEIXOTO, N. B.; GONÇALVES, A. S. Jardim Pantanal:a instrumentalização de uma bacia hidrográfica. V!RUS, São Carlos, n. 22, Semestre 1, julho, 2021. [online]. Disponível em:<http://www.nomads.usp.br/virus/virus22/?sec=4&item=2&lang=pt>. Acesso em: 09 Set. 2021.

SCOTT, James C. Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Londres: Yale University Press. 1999

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