O Ala Plástica e a empiria dos pantanais
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Estuário do Rio da Prata, Argentina (1991-2016)
Resumo: O ensaio relata parte da trajetória do projeto Ala Plástica: coletivo argentino surgido em 1991 na região de Punta Lara, La Plata, cuja atuação centrava-se nas orlas e zonas costeiras do estuário do Rio da Prata (canal que prevê acesso aos rios Paraná e Paraguai e que sofre o impacto do fluxo hídrico de cargas, da atividade extrativista e agroexportadora responsável por afetar diretamente os ecossistemas e as vidas ribeirinhas do entorno). Resultante da junção do artista, advogado e ambientalista Alejandro Meitin, com o horticultor Rafael Santos e a arte-educadora Silvina Babich (jovens estudantes ligados à UNLP, Universidade Nacional de La Plata), Ala Plástica experimentou, por mais de duas décadas de atuação, formas de entrecruzamento de suas atividades poéticas com discussões de política pública ligadas ao urbanismo e ao meio-ambiente.
O coletivo Ala Plástica (hoje dissolvido e desdobrado no laboratório Casa Río) surgiu em 1991 e foi então que se instituiu, junto à região de Punta Lara, uma iniciativa de caráter transdisciplinar envolvida em ações promovidas pela parceria entre artistas, pesquisadores, cientistas, membros comunitários e entidades locais. Formado pela arte-educadora Silvina Babich, pelo horticultor Rafael Santos e por Alejandro Meitin – um trio ainda bastante jovem, mas desde então interessado na problematização da ideia de espaço público através da disciplina da arte –, o coletivo inicialmente assentou base na antiga sede da biblioteca municipal de La Plata, casa desativada desde a ditadura, situada em meio ao zoológico no centro histórico da capital. Foi ali, com o apoio da prefeitura e com algum esforço dirigido à recuperação do espaço abandonado, que se fundou a primeira sede do grupo (local onde permaneceram por mais de dez anos) e onde se ativaram experiências de investigação poética, de produção intelectual e ações críticas ligadas à problemática ambiental. Como a sede era vizinha do Museu de Ciências Naturais (importante museu onde se encontrava a Faculdade de Ciências Naturais da província de La Plata), os jovens do coletivo logo começaram a despertar alguma curiosidade dos professores, hidrólogos, geógrafos e paleontólogos que cruzavam pelo caminho e identificavam aquela nova atividade ainda desconhecida no espaço do zoológico. Naquele período, o Ala Plástica já tinha proximidade com alguns docentes da universidade; mas foi a partir desse fluxo de trocas com outros cientistas do entorno que se efetivou um vínculo produtivo com uma rede de pesquisadores que seria logo incorporada nos seus processos de trabalho. Em uma das primeiras ações, o coletivo fabricou, na cidade de La Plata, cubos em concreto de grande dimensão cujo interior armazenava baterias destinadas ao descarte. Segundo a iniciativa, o trabalho surgiu como resposta ao relatório do Instituto Nacional de Estadística y Censos de la República Argentina (Indec), que informava o aumento de 538% de importação de baterias de metais pesados no ano de 1991, em coincidência com a proibição da venda do material em países da Europa e dos Estados Unidos (ALA PLÁSTICA, 2022). Realizada no ano de 1993, a obra Residuos Urbanos Tóxicos de Energía assumiu um formato objetual, escultórico e instalativo que logo sairia de cena do escopo produtivo do Ala Plástica, embora já indicasse a atenção que o grupo passaria a direcionar à contestação de políticas externas cujas deliberações traziam impactos e interferências diretas repercutidas a nível local. A partir de então, ainda ocupando a antiga sede da biblioteca, o coletivo deslocou sua atenção do marco urbano, dirigindo-se à área costeira. Isso porque se entendia que o principal componente demarcador das características do território onde se encontravam era o rio: o estuário do rio da Prata – já que na confluência dos rios Paraná e Uruguai (ao aglutinar as águas do Norte em deságue no Atlântico e ao evidenciar sintomas bastante concretos do legado colonial e extrativista) o estuário sempre fora um palco de conflitos – tanto históricos (entre nações fronteiriças) como atuais (MEITIN et al., 2020). Fonte de água doce de mais de 17 milhões de habitantes da costa, fonte também de abastecimento das comunidades ribeirinhas da orla do delta, o estuário acompanhava, nas suas margens, as tensões ocasionadas pelos processos de exploração natural, pelo alto índice de extração mineral, pelo desmatamento, pela especulação imobiliária que passou a avançar sobre áreas de pantanal, ao mesmo tempo em que passou a assistir, nos últimos anos, a emigração de habitantes dos centros de Buenos Aires e La Plata em direção às superfícies dos limites físicos que ultrapassavam a cidade. Nesse impulso de crescimento populacional, cujos efeitos evidenciaram o desequilíbrio do sistema de cheias, dava-se, concomitante, a perda de parte das terras produtivas e uma série de consequências ao bioma e às práticas sociais locais (MEITIN et al., 2020). Além do mais, ao longo da década de 1990, a região passou a sofrer o impacto das medidas do IIRSA, Projeto de Integração da Infraestrutura Regional Sul – Americana, formado por representantes de 12 países do Sul do continente cujo interesse central era a organização do território em corredores transnacionais para a facilitação do fluxo de comércio. Na prática, o IIRSA era um instrumento político-econômico neoliberal responsável por mais de 400 projetos situados em contexto sul-americano voltados a grandes obras de infraestrutura de transporte, energia e telecomunicação, bem como à liberação de acesso a recursos naturais e ao gerenciamento de centros de produção locais que passavam a receber ingerência de fora. Na região litorânea junto ao delta, o projeto liderou a construção de complexos rodoviários e ferroviários que atravessaram áreas de estuário e ainda concretizou projetos de barragem que ocasionaram o deslocamento de mais de 50 mil residentes – cujo impacto era predominantemente direcionado ao bioma da costa e às populações rurais da Bacia do Rio da Prata. Essa reorganização política e espacial, porém, deu corpo à criação de uma infraestrutura de indústria, transporte e energia que “afetou o biossistema, diminuiu a independência das comunidades locais, erodiu as fronteiras geopolíticas e as topografias culturais até então resistentes à lógica da globalização”, ao mesmo tempo em que deslocou a tomada de decisão para “uma rede de bancos de desenvolvimento e agências quase-privadas” (KESTER, 2011, p. 140). A transformação dos ecossistemas das zonas úmidas por aterros, queimadas e polderização para dar força ao agronegócio deu margem a um processo conhecido como pampeanização do delta. Em suma, o IIRSA era um consórcio de bancos, governos e agências interessado em atuar como um ente de autoridade supranacional (MEITIN, 2022), que, ao fim e ao cabo, vinha reforçando o processo de desmantelamento do poder do estado como um organismo territorial. Com isso, sua interferência abriu margem para o desdobramento de um novo imaginário que atropelava com velocidade aqueles já sedimentados e afetava de modo drástico a configuração social e ambiental daquele contexto. De acordo com Alejandro Meitin, a imposição desses procedimentos, justificados pela promessa de um bem-estar econômico regional, garantido via extrativismo, suprimia a autonomia das comunidades da orla do delta e se sobrepunha ao “poder poético” imanente e às “ecologias locais” (MEITIN et al., 2020, p. 8). A fim de contribuir com o debate sobre as reverberações socioambientais que vinham abalando a região, o Ala Plástica começou a estruturar uma rede de parceiros e interlocutores que contribuíssem com a problematização desses impactos e suas procedências sob diferentes perspectivas. O diálogo com representantes de setores da administração pública municipal vinha sendo consolidado desde o princípio da década de 1990, inclusive através da atuação de Meitin como parte do conselho assessor da Secretaria Municipal do Meio Ambiente. A interlocução com membros da comunidade científica internacional foi também se efetivando, em especial com a participação da iniciativa na Conferência Eco-92, realizada no Rio de Janeiro (primeira Conferência das Nações Unidas direcionada ao Meio Ambiente e Desenvolvimento). Sua aproximação com a comunidade artística também se fortaleceu a partir da presença do Ala Plástica no simpósio Littoral: New Zones for Critical Art Practice, realizado na cidade de Manchester no ano de 1994. A propósito, foi a partir dessa viagem à Inglaterra que o grupo se inseriu em uma rede de debate internacional e firmou um canal de relação profissional contínuo com os organizadores Ian Hunter, Celia Lerner, com Grand Kester e artistas envolvidos com pesquisas atreladas à prática social. Foi também a partir desse momento em que o Ala Plástica passou a angariar outras fontes de apoio orçamentário, fora do eixo regional da Província de La Plata, para destinar maior fôlego aos estudos que começavam a exercer junto à área costeira. Ao ampliar a captura de recursos, o grupo pôde concentrar esforços na estruturação de uma rede de articulação local, não mais constituída somente pelos profissionais acadêmicos que já vinham acompanhando sua trajetória, mas especialmente com trabalhadores das áreas rurais de Punta Lara (distrito onde Meitin havia nascido), de modo a expandir seu escopo de vinculação com representantes comunitários da orla do delta. Em 1995, um ano após sua participação no simpósio na Universidade de Salford, o Ala Plástica obteve apoio do British Council, do Ministério do Meio Ambiente de La Plata e de outras instituições locais para financiar a vinda de Hunter e Leiner à Argentina3. A ideia era incorporar os pesquisadores numa proposta de intervenção artística alocada nas margens da faixa ocidental sul do Rio da Prata, no distrito de Punta Lara – local marcado por um processo de deterioração e poluição das águas, acirrado com as atividades sociais da área metropolitana da cidade de Buenos Aires, logo ao norte. Durante a vinda do casal, o grupo estabeleceu parceria com o Departamento de Botânica do Museu de Ciências Naturais da UNLP para organizar, ao longo de um mês, a ativação de uma série de foros de debates junto com junqueiros, pescadores, agricultores, biólogos, hidrólogos e gestores públicos, cujo intuito era viabilizar a aproximação de diferentes atores sociais da região costeira, a fim de debater sobre alguns dos sintomas mais recentes que vinham impactando o bioma da orla e o dia a dia de quem vivia por lá. Durante esse período, remanescentes indígenas do povoado de Toba, representantes do Centro Cultural Berazategui, lideranças comunitárias da Cooperativa de Cesteros do Tigre, da cooperativa telefônica local, da escola de Quilmes e o próprio prefeito de La Plata também acompanharam o programa de encontros. A partir dessas instâncias de interação com os grupos participantes (a partir da escuta e da troca com produtores locais que há tempos trabalhavam com o junco enquanto recurso usado no artesanato), se desenhou o trabalho Especies Emergentes, uma das primeiras ações de caráter colaborativo de longa duração do Ala Plástica, que consistiu em reativar uma área de solo degradado da orla com a técnica de plantio do junco: planta aquática que atua na regeneração e colonização rápida do solo por meio de raízes que criam redes subterrâneas e cujas propriedades permitiriam a depuração d´água e de terrenos afetados. Tendo a sede do Clube Náutico Ensenada como base de trabalho, plantou-se coletivamente uma série de mudas de junco, calculadas para que estivessem próximas o suficiente para que suas raízes pudessem se encontrar, criando uma malha de depuração. Com base em técnicas de crescimento induzido e instalações temporárias com fibras naturais, o junco (que atuaria como um filtro e purificador natural) reduziria a contaminação local (KELLEY; KESTER, 2017) e criaria, no tempo, a conformação de uma nova paisagem: um hábitat espacialmente circunscrito, em contraste com a paisagem não interferida e já afetada dos terrenos vizinhos. Após a formação do canteiro de planta aquática, concentrado nessa área específica nas margens sul da franja ocidental do rio, o Ala Plástica ainda deu prosseguimento ao plantio de outras espécies nativas nos anos subsequentes como experimento de recuperação da autonomia daquele ecossistema – que se efetivou com o crescimento de uma vegetação secundária. Em decorrência, Especies Emergentes deu margem ao desdobramento de outras ações que tinham como objetivo o debate sobre os possíveis fins que o junco já crescido poderia ter na vida e na economia local. Foi em 1996, através da consolidação de parcerias com a Asociación de Mimbreros Ltda de Tigre, com a Cooperativa de Produtores de Berisso e com a Escuela de Agropecuaria de Abasto, que o Ala Plástica articulou encontros com fazendeiros, artesãos, membros das cooperativas da área do estuário e moradores das ilhas do entorno, visando discutir sobre as possibilidades de ampliação do uso do junco para além daqueles adotados pela população local, ligados à produção artesanal cesteira e de móveis. O processo foi encabeçado por Silvina Babich, quem se aprofundou no estudo do material ao lado de produtores locais. Foi com a aprendizagem de novas técnicas de colheita, de secagem, de trama e modelagem que Babich passou a conduzir oficinas nas quais o entrecruzamento das linguagens do desenho, da escultura e do design tornava-se meio para se pensar formas de experimentação e aproveitamento da fibra vegetal para a ampliação de perspectivas de renda. Em paralelo, instalações em junco começaram a ser dispostas em alguns espaços públicos do distrito de Punta Lara. Mas é interessante dizer que mais que um projeto interventivo site-especific de caráter ambiental, Especies Emergentes teve peso no processo de estruturação da metodologia de trabalho que passaria a ser exercida pelo Ala Plástica dali em diante. Dinâmicas como as de reativação de espaços públicos desativados para a consolidação de âmbitos de sociabilidade e de participação comunitária; de instauração de fóruns de debate interdisciplinares com atores sociais de diferentes setores como ponto de partida para qualquer exercício prático e poético; de incentivo ao cruzamento entre saberes técnico-científicos com conhecimentos oriundos das práxis e da cultura autóctone; bem como as de articulação dessa soma de saberes em comunhão com a oferta de recursos locais foram, a partir de então, tornando-se alguns dos principais mecanismos de trabalho. Nesse sentido, pode-se dizer que o trabalho Especies Emergentes foi um laboratório de experimentação metodológica – até porque aquele gesto coletivo de cultivo do junco (cujo efeito implicava a capacidade de se criar uma articulação subterrânea apta à modificação territorial) não deixava de atuar como metáfora às capacidades regenerativas do fazer colaborativo e à potência que reside no planejamento de exercícios criativos sociais e interculturais integrados. A qualidade de expansão rizomática da planta passava a ser então compreendida também como uma modalidade criativa – e tudo isso se assemelhava ao cerne do conceito de rizoma, embora a elaboração de Deleuze e Guattari não tivesse sido lida ou debatida pelos membros do Ala Plástica e demais envolvidos até então. Quer dizer, ao contrário da árvore, que tem uma estrutura hierárquica e centralizada, com um tronco que se ramifica em galhos e folhas, o rizoma seria uma estrutura horizontal, descentralizada, composta por raízes que se conectam umas às outras, sem uma ordem predefinida, tampouco um núcleo ou nódulo central de irradiação. Assim, suas conexões ocorrem em direções e momentos variados, em uma trama complexa de relações. Ao perceber as correlações e reciprocidades entre o exercício prático e colaborativo acionado em Especies Emergentes com a perspectiva epistemológica apresentada em Mil Platôs (1980), a terminologia de rizoma, na sua dimensão filosófica, fora então aplicada pelo coletivo como uma lente teórica possível em seus métodos de trabalhos. Afinal, tratava-se, mais que nada, de uma metáfora para se pensar a organização de diferentes formas de vida e de conhecimento que se desenvolvem de maneira não hierárquica e não linear: um procedimento investigativo de resgate rizomático daquela cultura local (ALA PLÁSTICA, 2022). Grant Kester, pesquisador norte-americano que conheceu a iniciativa do Ala Plástica a partir do encontro em Manchester, também argumentou que Especies Emergentes podia ser compreendido através da metáfora da “expansão rizomática”. Para ele, o comportamento biológico acionado na ação sinalizava, simbolicamente, a possibilidade de insurgência de novos modos de prática criativa e coletiva capazes de “desafiar os interesses políticos e econômicos por trás do desenvolvimento em grande escala na região” (KESTER, 2011, p. 26). Nesse raciocínio, Kester assinalou um formato de experimentação poética que vinculava “as características emergentes das plantas aquáticas (como disparos de novas condições de sustentação da diversidade de formas de vida)” ao “caráter emergente das ideias e práticas criativas” correspondentes à comunidade (KESTER, 2011, pg. 140). Foi então que o coletivo começou a definir sua prática artística como um modelo de ação, interação e conectividade a nível local, no qual procedimentos de recuperação do poder fazer social (ALA PLÁSTICA, 2022) tornavam-se pontos centrais do trabalho em arte. Nesse sentido, a arte em si era acionada como uma forma de se imaginar outras formas de ocupação e auto-organização territorial possíveis, de forma que os artistas envolvidos se tornavam, mais que nada, agentes catalizadores desses processos. Como lembrou Alejandro em entrevista realizada na Rádio Mutante (2020), esse modelo de experimentação “pós-objetual”, “dialógico” e “interventivo” por eles testados não encontrava ressonância em outras práticas artísticas do contexto de La Plata. Vale lembrar que a cidade teve relevância histórica na produção das artes visuais da Argentina dos anos 1970 e teve peso como polo de experimentação artística alocada no espaço público, bem como de investigações criativas editoriais que criavam redes para além do espaço institucional circunscrito das artes. Edgard Antonio Vigo, Carlos Ginzburg ou mesmo o grupo Escombro (cuja produção é contemporânea ao Ala Plástica) foram exemplos disso. Mas a modulação de um formato de trabalho que bebia de saberes convergentes entre cientistas da capital, somados aos saberes oriundos da prática social comunitária, era um modelo ainda não explorado no circuito local (MEITIN, 2020). “Este projeto deu origem a uma intenção de resgate de longo prazo de resquícios da cultura local como um elo para a recriação de redes, bem como ao início de uma série de exercícios interligados no estuário do Rio da Prata visando a sustentação sócio/natural ameaçada. Cada um deles estava vinculado à ecologia cultural e bio/física da área em um formato de “ativismo lento” que, quando reunidos, criavam uma assembleia social, por meio de uma multiplicidade de exercícios entrelaçados que permitiam redimensionar as possibilidades de intervenção artística, explorar a possibilidade de desenvolver exercícios integrados no território à escala biorregional. Esses exercícios trataram de problemas socioambientais, explorando modelos não institucionais e interculturais na esfera social”. (MEITIN, 2009) Nos anos subsequentes, o coletivo negociou a ocupação da antiga estação de trem de Punta Lara, edifício desativado que se tornou um espaço colaborativo disponível para encontros e realização de atividades. Lá surgiu a Revista de Punta, publicação editada pelo Ala Plástica em parceria com a comunidade, com tiragem mensal de 3.000 exemplares. Com 36 números publicados, era distribuída em diferentes serviços pelo distrito. Entre os conteúdos publicados, ao lado de anúncios comerciais, informes e comunicações de eventos e programações do bairro (promovidas tanto pelo Ala Plástica, como pela prefeitura e entidades locais), dividiam espaço na página, imagens de obras como Spiral Jetty (1968-1970), de Smithson, em Utah; 7000 Oaks, de Beuys (1982-1986), em Kassel; e obras de Helen e Newton Harrison. O intuito era introduzir, nas comunidades de Punta Lara, trabalhos emblemáticos da história da arte, de forma a se propor referências e entrecruzamentos entre essas propositivas externas com o debate sobre as ações realizadas pela localidade. O novo centro comunitário também se organizou como um ponto de encontro para se debater técnicas de silvicultura, de agricultura de subsistência, para se desenhar habitações de emergência e soluções alternativas aos alagamentos em dias de cheia, bem como para se criar engajamento crítico da própria sociedade civil frente ao planejamento de projetos de infraestrutura com direto impacto local. Um exemplo foi a mobilização comunitária frente à tentativa de construção da Puente de Punta Lara que conectaria a região litorânea da Argentina até Colônia de Sacramento (cidade situada na margem oposta do Rio da Prata), a fim de ampliar o fluxo de cadeia produtiva e facilitar o acesso aos terrenos condominiais cada vez mais abundantes na costa uruguaia – fruto da expansão da especulação imobiliária –, ainda que a execução do projeto implicasse a superação de “barreiras naturais”. Encabeçada pelo IIRSA, a proposta de construção da ponte foi adiada frente à reação da população local. A organização de assembleias, encontros e debates públicos sobre as oportunidades e consequências que poderiam surgir da construção tiveram grande adesão popular e foram mediados pela articulação do Ala Plástica. Esses encontros comunitários, alocados na periferia distrital de La Plata, começaram a receber algum destaque nos jornais da época e nos meios de comunicação. Em olhar retrospectivo, esse modelo participativo que, na concepção de Alejandro Meitin, teve pioneirismo no centro comunal de Punta Lara, repercutiu nas articulações de base da capital de La Plata e de Buenos Aires. De acordo com o artista, as ações transcorridas na antiga estação de trem tiveram influência na agitação das mobilizações sociais que começaram a ganhar maior peso nos anos seguintes, em especial a partir da crise financeira de 2001 (MEITIN, 2021). No final da década, no ano de 1999, a população local atestou um episódio de vazamento de petróleo da empresa anglo-holandesa Shell nas águas do Rio da Prata – à época, o maior derramamento de óleo em água doce do planeta. Em poucos dias, 5.000 metros cúbicos de petróleo começaram a se dispersar pelos córregos da região do distrito de Magdalena, vizinho de Punta Lara, e a penetrar nas áreas ribeirinhas da orla, somando um impacto que não só atingiu mais de 20 quilômetros de costa, como gerou danos à flora, à fauna e aos habitantes ribeirinhos. Apesar da escala do desastre, o caso foi abafado e minimizado pelo poder público, sendo tratado por responsáveis do estado e engenheiros da Shell como um incidente pontual “sob controle” (MEIRÁS, 2022). Isso levou o Ala Plástica a formar uma equipe de investigação forense a partir da rede de colaboradores atuantes no entorno, comprometida com a coleta de dados e com o mapeamento das consequências do vazamento. Na tentativa de furar o bloqueio informativo que rondava o caso, o coletivo também acionou profissionais da mídia alternativa para garantir a cobertura do acidente e relatar à sociedade civil as sequelas disparadas aos arredores. Com base nos relatórios montado pela equipe do Ala Plástica, a situação na costa de Magdalena começou a tornar-se pública e adquirir repercussão internacional. Isso levou à mobilização de agrupações políticas, associações de bairro, técnicos cientistas, junto da participação da sociedade civil (além da parceria do comitê nacional da Unesco, da participação de Marcelo Acerbi, do Instituto de Geografia da Facultade de Filosofía e Letras da UBA, de Jorge Williams, da Facultade de Ciências Naturais da UNLP e também da Unión Internacional para la Conservación de la Naturaleza), que encabeçou a elaboração de propostas de contenção e exerceu pressão no poder público sobre a criminalização dos responsáveis (MEIRÁS, 2022). O relatório documental foi também integrado como objeto de investigação no julgamento que processava o caso. Em 2002, a Suprema Corte de Justiça da Inglaterra ordenou à Shell que investisse 35 milhões de dólares para reparação ecossistêmica, algo que se converteu no caso ambiental mais importante da América Latina. Mas até então, 23 anos depois do ocorrido, “nenhuma penalidade foi imposta pelos estados nacionais e provinciais, nem houve qualquer sentença judicial final” (MEIRÁS, 2022). De acordo com o biólogo Marcelo Miranda, atual membro do laboratório Casa Río, o desdobramento da ação encabeçada pelo Ala Plástica teve um importante impacto regional – se não houvesse o impulso disparado pelo grupo de organização comunitária e de participação cidadã, “este caso seria mais um sobre o qual saberíamos muito pouco daquilo que de fato aconteceu” (MEIRÁS, 2022). Materializada em uma instalação que reunia vídeos documentais, mapas cartográficos e algumas esculturas feitas com a vegetação ribeirinha tirada da orla do rio, a experiência do derramamento no distrito de Magdalena foi apresentada na exposição Citizen Culture: Artists and Arquitects Shapes Policy, em 2014, no Museu de Santa Mônica, com curadoria de Lucia Sanroman. A mostra reuniu trabalhos artísticos das cidades de Oakland, Califórnia; Los Angeles, Califórnia; Chicago, Illinois; Medellín, Colômbia; Bogotá, Colômbia e La Plata, Argentina, que fossem fruto de articulações diretas com governos municipais, organizações governamentais e representantes da defensoria ou promotoria pública. A proposta curatorial voltava-se a debater procedimentos artísticos que vinham incitando o diálogo para a criação de novos modos de participação civil e o redesenho de regulamentações legislativas. No evento, foram reunidas as produções de Tania Bruguera, Michael Maltzan, do chamado The Medellín Diagram (Teddy Cruz, Fonna Forman, Matthias Goerlich e Alejandro Echeverri), Antanas Mockus, Tamms Year Tem, além de Suzanne Lacy, que retomou sua experiência com os jovens ativistas de Oakland, em 1997, como parte do Oakland Projects. O caso de derramamento da Shell também virou filme. O corpo docente de Geografia do município de Magdalena, junto com alunos do ensino médio, laboratórios comunitários audiovisuais, representantes da imprensa alternativa e membros do Ala Plástica gravaram o filme La Teoría del Derrame: Magdalena empetrolada, de José Luis Meirás, recuperando o acidente que derrubou mais de 5.4000.000 litros de óleo na costa argentina. Aos poucos, a atuação do Ala Plástica, no seu enraizamento sobre a região do estuário do Rio da Prata, começou a expandir e a ganhar outra dimensão. Por compartilhar problemáticas socioambientais com aquelas sofridas em outras zonas do entorno da bacia hidrográfica, o grupo passou a ampliar sua área de pesquisa pela região do Vale Central da Bacia Platina – bacia de 3.200.000 km² de superfície que, na reunião da maior concentração de pantanais e alagados, dá corpo ao corredor de água doce mais extenso do planeta. Nascida no Pantanal do Mato Grosso, a planície de inundação que transcorre pelo vale central abrange boa parte do sudoeste do Brasil, alcança todo o Paraguai, o Uruguai, o norte da Argentina e o sul da Bolívia e ainda abarca uma densa rede de afluentes e subafluentes cujas águas desaguam em 14 bocas no estuário do Rio da Prata. A Bacia Platina ou del Plata, como seu nome bem nos lembra, traz em seus cursos fluviais a memória de um cenário histórico extrativista, por onde se escoava toda prata removida em período colonial desde Potosí. Hoje, dando à soja o protagonismo que um dia foi da prata, a área da bacia ainda revisita feridas históricas, ao mesmo tempo em que lida atualmente com a conjuntura de desestabilização política reforçada pelos imperativos advindos dos efeitos da transnacionalização territorial. Para Alejandro Meitin, por estarem situadas em uma área globalmente reconhecida por seu papel no fornecimento de energia, minerais e nutrientes, cidades especialmente de pequeno e médio porte, situadas junto às áreas de margem, tornaram-se “áreas de sensibilidade geopolítica, ricas em disputas advindas tanto da violência institucional, como de migrações, deslocamentos forçados e novos assentamentos populacionais” (HOLMES; MEITIN, 2017). Assim, a partir dessa mudança escalar no seu campo de ação, o Ala Plástica acabou ampliando seu raio de pesquisa e sua rede de parcerias para além da área do estuário (MEITIN et al., 2020, p. 30). “Em 2005 começamos a realizar encontros periódicos com um amplo e diversificado grupo de organizações camponesas e indígenas e com grupos artísticos e ecológicos da sociedade civil do Paraguai, Uruguai e Argentina. Esses encontros, realizados na emblemática cidade de Assunção, visavam ativar capacidades no conhecimento e uso de tecnologias de análise territorial para avaliar o chamado processo de integração regional da IIRSA, confrontando-o com um processo de integração diversificado que asseguraria a evolução da identidade territorial”. (ALA PLÁSTICA, 2022) Em 2014, pela ação chamada Las Cuencas como Laboratórios de Governança, o Ala Plástica reuniu coletivos de artistas que tinha em comum pesquisas ligadas a áreas de bacias hidrográficas de outras regiões, em especial do continente americano e europeu. Com a presença de Critical Art Ensemble (Tallahassee, Estados Unidos), El Levante (Rosário, Argentina), Centro Experimental Oido Salvaje (Quito, Equador), Sitezise (Barcelona, Espanha), Plataforma La Dársena (Buenos Aires, Argentina) e o Grupo Compass (Chicago, Estados Unidos), o Ala Plástica aproximou esses coletivos de líderes comunitários habitantes da costa fluvial do Rio Paraná e da Prata. O objetivo era estruturar um estudo de sistematização de conflitos e controvérsias reconhecidos sobre os ecossistemas costeiros, a fim também de se discutir metodologias de trabalho que tivessem como base a imersão em contexto. Concebido por Alejandro Meitin, Maurico Corbalán (M7red) e Teddy Cruz (professor do Centro de Ecologias Urbanas da Universidade da Califórnia San Diego), o projeto viabilizou o intercâmbio de diferentes repertórios de experimentação crítica e artística envolvida com os embates sociais e ecológicos vividos junto a áreas abastecidas de recursos hídricos. “Este conjunto implantou ações nômades ampliadas e estratégias dialógicas vinculadas a contextos sociais ao longo de um corredor de 400 km na área que inclui a frente fluvial da faixa costeira direita do Rio Paraná e do Rio da Prata e que inclui o macrossistema de áreas úmidas do delta do Paraná, o estuário do Rio da Prata e grandes centros urbanos como a Grande Buenos Aires, a Grande La Plata e a Grande Rosário, uma aglomeração urbana, industrial e agrícola que ultrapassa 20 milhões de habitantes e se enquadra no que poderia ser definido como um cidade-região global. [...] Nesses locais, o grupo e os colaboradores, com o auxílio de um aparelho portátil de transmissão de rádio, realizaram diálogos radiofônicos abertos e oficinas de radiodocumentário, gravações de campo, entrevistas e divulgação coletiva de conteúdos, passeios em profundidade pelo rio e áreas rurais, visitas a experiências de soberania alimentar, oficinas, cartografia pública, conferências e apresentações em centros culturais, museus e universidades. Todas essas ações possibilitaram o fortalecimento de alianças regionais e a criação de novos processos de comunicação”. (HOLMES; MEITIN, 2017) Com a estruturação do programa de trabalho do Casa Río, a atuação dos grupos de estudos sobre as áreas costeiras do Vale Central da Bacia Platina ganhou mais força, aumentando o grau de reconhecimento da diversidade de práticas comunitárias que apresentavam reações simbólicas e criativas aos embates incitados pelo avanço da fronteira agrícola, pelas construções de grandes obras de infraestrutura, pela força da mineração ou mesmo pelo crescimento do setor imobiliário, alocadas pelas zonas ribeirinhas do delta e pelas áreas de humedales. Esse olhar sistematizado sobre aquele contexto geográfico agregou volume e complexidade ao conjunto de registros e dispositivos documentais responsáveis por relatar esses processos de investigação. Nomeado hoje de Arquivo Casa Río Lab, o acervo que se formou a partir da documentação gerada ao longo dos anos de atuação do Ala Plástica reúne um material vasto sobre as vivências e estratégias coletivas encontradas pelas zonas úmidas do entorno da Bacia Platina, narrado, em grande medida, pela voz dos moradores que ali habitam.
imagens ©AlejandroMeitin
Bibliografia
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MEIRÁS, José Luiz. El derrame de petróleo en Magdalena, una historia. Disponível em:https://opsur.org.ar/2022/05/13/el-derrame-de-petroleo-en-magdalena-una-historia/> Acesso em: 22 jun. 2022.
MEITÍN, Alejandro. Entrevista concedida à Radio Mutante. Disponível em:<https://territorios.casariolab.art/radio_mutante> Acesso em: 24 ago. 2022.______. Urbanismo crítico, intervención bioregional y especies emergentes. Disponível em:http://hemi.nyu.edu/hemi/fr/e-misferica-62/meitin> Acesso em: 24 ago. 2022.
MEITÍN, Alejandro; CARNAVALE, Graciela; HOLMES, Brian; MATERIA, Colectiva. La Tierra no Resistirá. Casa Río Lab: La Plata, 2020.