top of page
flavia.jpg
flavia2.jpg

Exposição: Bermúdez, se extinguen las fieras?
-

Bermúdez, Lincoln (Argentina)

Texto de Lola Fabres

Resumo: O ensaio parte do trabalho artístico de Flavia Mielnik artista de São Paulo, realizado no distrito de Bermúdez (pequeno vilarejo rural situado no interior da Argentina), durante o programa de residência Comunitaria em 2016. Enquanto visitava o vilarejo de Bermúdez, Flavia ouvia histórias sobre uma cidade de mais de mil habitantes, que possuía uma estação de trem, uma padaria, um açougue, uma oficina de pintura, uma cooperativa, um clube e tantas outras coisas. Hoje, a vila tem menos de 90 habitantes e nenhum desses ofícios existe mais. A partir da escuta desses relatos pronunciados pelos vizinhos do povoado, a artista iniciou um projeto para fotografar esses lugares e representar cenários que permitissem compreender o que um dia havia existido ali. Ao comentar sobre o projeto de Flavia Mielnik, bem como sua exposição realizada posteriormente no Paço das Artes, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, o ensaio busca refletir sobre particularidades da prática artística que se dá em território ao se ver em circulação. 
 

Logo que entrei na sala expositiva, lembro que fui vendo aos poucos aquele mobiliário de madeira que se distribuía pelo espaço dando um ar de casa antiga. Era maio de 2018, e o Museu da Imagem e do Som ainda ocupava a sede do Jardim Europa, bairro oeste da cidade de São Paulo. A sala era pequena e estava toda pintada com um tom salmão-rosa-claro, em alusão a um cômodo doméstico qualquer. A iluminação era baixa e se dava por alguns cabos de luz que vinham do alto suspendendo lâmpadas caseiras que pendiam pelo espaço. Ao entrar, via-se um vídeo projetado na parede logo em frente; ao lado dele, um pequeno núcleo de cadeiras e cômodas que guardavam um conjunto de carimbos de algumas décadas atrás. No outro extremo, notava-se uma velha colcha, estampada com leões e tigres, erguida ao alto, no lado oposto da sala. Havia também uma urna e peças de madeira e pequenos suportes penduradas pelas quatro paredes. E justamente nessas prateleiras, apoiados sobre elas, acomodavam-se cartões postais com imagens que exibiam grupos de pessoas – grupos maiores e grupos menores, uns mais jovens, outros mais idosos, todos posando para a foto, assinalando algum tipo de atividade. Além dos cartões postais que decoravam todo o espaço, uma pequena mesa posicionava-se sozinha no centro da sala. Sob ela, via-se um mapa feito a punho: era uma espécie de anotação cartográfica que nos indicava as ordens espaciais do lugar ao qual a artista fazia referência. Bermúdez: se extinguen las fieras? era o nome da mostra, e foi em Bermúdez que eu e Flavia Mielnik, artista da exposição, tínhamos trabalhado juntas cerca de dois anos atrás. O título combinava o nome desta pequena cidade rural no interior da Argentina, com o nome de uma enciclopédia ilustrada que catalogava felinos em estado de extinção. Assim que vi o mapa, diagramado no centro da sala, lembrei de quando visitei Flavia anos antes, logo que ela chegara ao povoado de Bermúdez, algum dia de novembro de 2016. Nos encontramos numa sala de aula dentro da casa que abrigava a escola do vilarejo e o jardim de infância, local onde Flavia havia se hospedado nos primeiros dias da sua estadia. A primeira coisa que comentou foi que o pouco tempo que tinha permanecido por lá já parecia dilatado. Disse que o local se assemelhava a uma ilha – uma ilha banhada por terra com uma só antena telefônica localizada no quintal da escola que podia funcionar dependendo do dia – e comentou que recém começava a compreender um pouco sobre como se estruturava aquele lugar. De pronto abriu um mapa no qual se viam ruas e casas tracejadas às pressas. A antiga linha férrea que cruzava a cidade bem ao meio mostrava um vilarejo dividido em dois. Para atravessar de um lado a outro, teria que se cruzar pela grama já crescida ou se contornar os quarteirões ocupados por galpões de cereais desativados junto à via do trem. Flavia contou que, debruçada naquela mesma sala escolar onde nos reuníamos, juntou-se com Lidia Speroni e Vanina Balmaceda, cozinheiras do colégio e moradoras do povoado. Contou que as duas haviam lhe ajudado a montar aquele mapa, assinalando o que havia na localidade. “¬Aqui é por onde passava o trem”. “Vanina mora logo ali, ao lado de onde era a padaria”. “Evelina mora na rua de trás, onde ficava o antigo cabelereiro”. “Essa é a casa de Lidia: é onde nos juntamos todas quintas à noite, para comer empanadas, jogar cartas e futebol”... O esboço de mapa construído via relato e apontamentos permitiu que ela assimilasse melhor as disposições do que havia por lá. Permitiu também que viesse à tona uma série de locais, instituições e ofícios que deixaram de existir com o passar dos anos. Bermúdez é um distrito pequeno. À época, um censo local desatualizado feito no ano de 2010 registrava apenas 96 moradores, mas aquele povoado um dia já havia abrigado mais 900 habitantes. Desde os anos 1980, com a desativação da ferrovia, com a falta de acesso e um tanto de inundações, muitos habitantes foram migrando para as cidades vizinhas ou até outras mais afastadas. Isso explicava porque havia distâncias tão longas entre cada moradia. Ao rascunhar essa cartografia, entendeu-se que não só boa parte das casas ali presentes encontrava-se abandonada, mas que muitos dos terrenos baldios que demarcavam os vazios entre elas avisavam o desmanche de uma antiga construção. Feitas em adobe, muitas casas não resistiam ao passar dos anos e foram caindo aos poucos. O tempo também fez com que espaços públicos, como a praça ou o campo onde se jogava bola, fossem tomados pelo pasto. Nesse dia em que revisitaram a memória daquilo que um dia havia existido nos espaços já desabitados, Flavia anotou um total de 18 atividades, hoje inexistentes: a administração municipal, o açougue, o posto de gasolina, a borracharia, a cooperativa, a oficina de pintura, o correio, a ferragem, a estação de trem, o consultório médico, o estábulo com produção de laticínios, o cabelereiro, o clube, a igreja, a praça, a padaria, a delegacia de polícia e a quadra de esporte. Com isso, a artista e outros moradores começaram a fotografar cada um desses lugares – ou o que havia restado deles. E o processo ativou bastante gente do entorno. Durante os dias que Flavia permaneceu no vilarejo, a cidade foi aos poucos reocupando os pontos assinalados e se fantasiando dos ofícios que já haviam sumido do mapa. Foi com algum grau de impulso e de improviso que construíram cenas que recordavam da cidade nos seus anos de vigor. Lidia, a cozinheira da escola que lhe ajudou a cartografar as ruas de Bermúdez, era conhecida pelas melhores empanadas da região. Ao participar do projeto fotográfico proposto por Flavia, reuniu toda família, vestiu seu avental e abriu trilha no facão até chegar ao velho forno que avisava o local da antiga padaria, então desmoronada e tapada pelo mato. Pedro, o dono do armazém, abriu o cadeado que trancava a igreja e entrou envolto no lençol de casa, assumindo o posto do padre que há alguns anos já havia se ido. Carla, que queria ser prefeita, ergueu a bandeira nacional e se fotografou frente à antiga casa administrativa, local vazio desde que o subprefeito começara a administrar Bermúdez à distância, morando na cidade ao lado. Pepino e Jose Luis viajaram até Triunvirato, povoado vizinho mais próximo, a tomar emprestado os caps do uniforme da polícia. Em seguida, posicionaram-se trajados frente à delegacia desativada, apresentando-se como os novos guardas locais. Dona Rosa, moradora mais idosa do vilarejo e também a antiga dona do clube, foi atrás da chave do estabelecimento que um dia emprestara a algum vizinho. Quando localizou a chave extraviada, destravou a porta que o mantinha fechado há mais de quinze anos e fotografou-se junto ao balcão. Atrás dela, um grupo de crianças que acompanhava a montagem da cena, conheceu o espaço por dentro pela primeira vez. A foto tirada aquele dia fora o último registro do clube de Bermúdez ainda em pé. Anos depois, a estrutura ruiria, tornando-se apenas algumas peças de esquadrias e montes de tijolos acumulados pelo chão. Antes de voltar ao Brasil, a artista deixou as fotos com os moradores. Imprimiu e enquadrou as imagens em porta-retratos comprados por lá mesmo e as deixou em cada uma das casas do povoado. Assim, pelas cômodas das salas de estar, por armários nos quartos de dormir, pelas mesas onde fazem refeição e até em meio às prateleiras do armazém, hoje ainda se encontram emoldurados os registros daqueles dias de encenação. E assim, os cartões postais que se espalhavam pelo mobiliário que ocupava a instalação montada na exposição de Bermúdez: se extinguen las fieras?, mostra que apresentou a ativação de Flavia Mielnik alguns anos depois na cidade de São Paulo, reproduziam a série fotográfica clicada pelas ruas do vilarejo, ao mesmo tempo em que se dispunham a colher recados de espectadores que passassem pela exibição. Esses mesmos postais, com comentários do público visitante, seriam então remetidos posteriormente de volta à Bermúdez . Foi assim que a instalação pensada por Flavia no Museu da Imagem e do Som, contemplada na Temporada Paço das Artes, na cidade de São Paulo, buscou disponibilizar ao espectador uma perspectiva sua do processo vivido, bem como um rascunho de contextualização cultural e cartográfica daquela paisagem social. Foi assim que o mobiliário disposto pela sala entrou em cena como vestígio de um passado e como índice das construções daquele lugar. E foi assim também que as urnas, os carimbos, as gavetas e os postais serviram como suportes de interlocução entre geografias e tempos distintos – entre São Paulo e Bermúdez; entre passado e presente – e entre aqueles que ocupavam cada qual. E na tentativa de assinalar o âmbito das trocas e interações que marcaram todo o processo de captação de imagens, notou-se o intuito da artista em chamar o visitante para próximo da vivência, ao acercá-lo, via os registros em vídeo, dos bastidores do projeto fotográfico. Ainda assim, o ambiente exibitivo apontava para a limitação inerente do exercício documental. Dado o contato com o trabalho alocado no museu, pouco poderia se saber das particularidades dos vínculos que surgiram ou sobre o modo como se deram. Pouco também poderia se saber sobre as memórias acessadas, sobre impasses enfrentados, sobre expectativas que podem ter sido disparadas ou até incômodos que podem ter surgido ao se ter uma estrangeira revolvendo histórias do passado da região. A mostra documentava parte da experiência de Flavia e, como qualquer documento, elide-se nele boa parte da história que o circunda. Essa supressão informacional é constituinte de trabalhos processuais desse tipo. Produções artísticas que partem de uma dada localidade, que envolvem instâncias de articulação social, que se expandem no espaço e se prolongam no tempo, acirram ainda mais o desafio do seu deslocamento para a esfera expositiva, o que nos leva a perceber nelas o limite inevitável que demarca o enfrentamento da distinção entre a experiência in loco e seus subsequentes modos de abordagem ou representação. Para Grant Kester, essa supressão é uma “elisão sintomática” (2011, p. 68) que resulta do distanciamento entre a documentação e os aspectos relacionais constitutivos desse formato de trabalho. Observei esse grau de elisão a qual Grant Kester fez referência quando escutei Flavia comentar sobre as anotações que foram surgindo dos visitantes nos postais, próximo ao encerramento do período da exposição. O compartilhamento de palavras de nostalgia, de solidariedade ao cenário de abandono e de empatia frente ao efeito melancólico do trauma da migração foram fatores presentes nos escritos da maior parte do público que deixou impressões sobre o trabalho. Talvez não tivesse como deixar de ser, se pensarmos que todo e qualquer processo migratório carrega consigo “algum mal-estar que sempre surge da partida” (MELLADO, 2015, p. 19). Pastor Justo Mellado, crítico e curador chileno, se perguntou se seria possível existir um modelo não traumático de migração, uma vez que “todos sabemos que, no fundo, uma migração é o sintoma de uma derrota que afeta a condição de permanência de alguns agentes na sua terra de origem” (2015, p. 19). E essa leitura tampouco foi exclusiva daqueles que acessaram o trabalho na exposição montada em São Paulo. Ela também foi expressada por alguns moradores dos povoados vizinhos de Bermúdez que tiveram contato com a experiência. Noemi Valencia, habitante da cidade de Lincoln, compartilhou comigo alguns anos depois da passagem de Flavia por Bermúdez que o primeiro que pensou quando viu as imagens clicadas por lá foi na imagem da casa de sua mãe. Perguntou-se se a casa onde fora criada ao sul de Tucumán seguiria em pé ou se já estaria tombada no momento em que conseguisse revisitá-la outra vez. Naya Carneval, moradora de Pasteur, vilarejo situado a 75 km de distância de Bermúdez, também se lembrou do trabalho fotográfico impulsionado por Flavia, anos após sua realização. Disse que entendia a ação da artista como “uma síntese da vida de quem vive nesses povoados: de quem acompanha diariamente a partida de habitantes que buscam outros destinos, de quem presencia o desmonte da estrutura urbana e de quem convive, constantemente, conscientemente ou não, com esses vazios na rotina e no cotidiano” (CARNEVALE, 2022). Mas é interessante comentar que, quando coletei os relatos de Flavia relativos à experiência, bem como alguns comentários orais de moradores que estiveram juntos com ela na ação, em nenhum momento se percebia neles uma nostalgia na fala. O espírito do riso que acompanhava a lembrança era o que mais se sobrepunha no relato. O planejamento das vestimentas, as gargalhadas, as fotografias frustradas... eram especialmente os episódios cômicos aqueles que mais ficaram gravados na memória. E mesmo que o tom de lástima ou de solidariedade pudesse parecer central para vizinhos, bem como para boa parte daqueles que visitaram a mostra no Brasil, nas palavras da artista, os dias de encenação em Bermúdez haviam sido guiados pela “catarse da risada” e por um componente lúdico bastante atrelado ao jogo e à brincadeira. Talvez esse espírito do riso (evidente no vídeo projetado na exibição), pudesse ter atuado como uma espécie de ferramenta de mobilização de enfrentamento à nostalgia. Para essa averiguação, apenas a presença, a escuta, a coleta de dados e impressões ao longo do tempo. De um jeito ou de outro, momentaneamente ou não, compartilhou-se ao longo daquelas semanas vividas em Bermúdez um passado comum. Algo que viabilizou o acesso a um modo específico de conhecimento situado e um contato com o modo como vem se organizando as memórias naquele lugar. Até porque, como diz Justo Pastor, “a ruína também se dá pela maneira como se fala dela” (MELLADO, 2015, p. 128).

imagem acima ©FlaviaMielnik e imagem ao lado Leka Mendes

Publicação:

 

texto apresentado no 3ª SEPHA UERJ: Trajetórias Plurais, Metodologia de Pesquisa, organizado pela UERJ, Rio de Janeiro, 2023

 

Bibliografia:

 

KESTER, Grant. Conversations Pieces: Community and communication in modern art. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2013a. ______. The one and the many: contemporary collaborative art in a global context. Durham e Londres: Duke Univerity Press, 2011.MELLADO, Justo Pastor. Escenas Locales: ficción, história y política en la gestión de arte contemporáneo. Serra Maria de Punilla: Curatoría Forense, 2015.MIELNIK. Flavia. [Depoimento a Paola Fabres]. nov. 2016

bottom of page