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Casco: ensaio
de integração
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Diferentes distritos no Litoral Norte Gaúcho (2021)
Resumo: O ensaio relata a experiência de Lola Fabres no processo de elaboração da proposta metodológica do programa de residência artística Casco: Programa de Integração Arte e Comunidade. Além de situar e contextualizar informações sobre o território de atuação do projeto, o ensaio também elucida seus processos de trabalho, formação de equipe e propósitos de realização. Em suma, noções como as de interdisciplinaridade, rede e pesquisa e criação compartilhada tornam-se alguns dos pontos chave do projeto.
O Casco surgiu como um ensaio. Surgiu da vontade de deslocarmos procedimentos do campo artístico para contextos distantes dos centros urbanos – e de agenciar o estranhamento que em geral acompanha o léxico da arte contemporânea fora do habitat da cidade grande. Queríamos aproximar esses procedimentos de cotidianos geralmente afastados das lógicas de espaços exibitivos e agendas institucionais da cultura. Não para replicar o espaço cultural ou reproduzir o modelo de fruição a uma nova plateia, e sim para testarmos a possibilidade de descentralização desses formatos de mediação. Nossa vontade era a de experimentar metodologias de trabalho em que o contato com a arte – e sua capacidade crítica e interdisciplinar – se desse em meio a diferentes dinâmicas sociais, junto a comunidades vizinhas, colocadas em interação. Dirigimo-nos, então, ao Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Não bem àquele litoral do veraneio e da beira-mar, tradicionalmente tido como o litoral gaúcho, mas a uma geografia litorânea predominantemente rural, situada entre a costa oceânica e a encosta da Serra do Mar, às margens da rodovia BR-101, a cerca de 130 quilômetros de Porto Alegre. Trata-se de uma extensão de terra bastante biodiversa – de ventos fortes, planícies arenosas, áreas de Mata Atlântica e muita água na forma de mar, lagoa, cachoeira, banhado e rio. Historicamente, o Litoral Norte nos conta muito da memória do Sul do Brasil. A região, já habitada por povos de origem Guarani (Arachãs e Carijós), recebeu as primeiras incursões portuguesas, estabeleceu-se como rota de passagem entre Laguna e Colônia de Sacramento, registrou a formação das primeiras colônias europeias do estado e foi a principal porta de entrada de africanos escravizados. Com o intuito de olhar para parte dessa extensão territorial, nosso trabalho ramificou-se por 12 distritos, nas localidades de Aguapés, Atlântida Sul, Barra do Ouro, Borússia, Itati, Maquiné, Morro Alto, Passinhos, Santa Luzia, Sanga Funda, Terra de Areia e Três Forquilhas. Todos esses distritos formavam parte da antiga Conceição do Arroio (atual Osório), a primeira vila emancipada de Santo Antônio da Patrulha. Hoje, além de carregar marcas históricas de um Sul em disputa, evidenciam uma confluência cultural marcante: em uma pequena área geográfica, encontram-se populações de origem açoriana, italiana, alemã, polonesa e japonesa, além de demarcações quilombolas, aldeias indígenas e comunidades tradicionais. Interessava-nos olhar para essa região. Transitar pelos opostos que se concentram em um mesmo lugar – nas vizinhanças entre a água doce e a salgada, entre a agrofloresta e o monocultivo, entre a pedreira e o catavento, entre a roça e a propagação da cultura condominial de luxo que ocupa os balneários e divide muros com favelas crescentes. Interessava-nos perceber um Sul a partir dali, em uma região que cada vez mais inaugura pesquisas ambientais, que nos ensina sobre a mata, sobre o campo, sobre as bacias hídricas e sobre as vidas sediadas ao seu redor. Que, além do mais, concentra uma produção relevante – e muito pouco conhecida – de historiadores locais, reúne lutas pelo direito à terra, pelo reconhecimento quilombola, pela autonomia campesina e absorve suor dos esforços por demarcação. Em todas suas vicissitudes, víamos ali um Sul cujo passado ainda é visível e que resguarda a duras penas a preservação de tradições atravessadas pela rodovia que conecta grandes capitais. Nem datado, nem bucólico, um Brasil presente e bastante atual. O Casco, portanto, organizou-se como um projeto de residência. Uma residência afim da integração entre arte e comunidade. Durante o mês de fevereiro de 2021, 12 artistas visuais do Rio Grande do Sul e de outros estados do Brasil residiriam individualmente nos distritos citados, com o intuito de desenvolver trabalhos em diálogo com a paisagem natural e as dinâmicas sociais locais. Mas a que tipo de proposta de “integração” estávamos nos referindo? Não buscávamos reproduzir alguns dos procedimentos que em geral configuram a produção contemporânea de vertente “colaborativa”. Não pretendíamos defender autorias necessariamente compartilhadas, nem construir microcosmos ideais de sociabilidade, nem incentivaríamos o implante de atributos relacionais ou interativos a qualquer obra realizada. Conceitualmente, interessávamo-nos por um “pensar juntos”, por um programa de trabalho que viabilizasse instâncias coletivas de discussão sobre as camadas políticas e históricas que ali se sedimentavam. Queríamos pensar um modelo de programa que possibilitasse um compartilhamento de olhares – externos e internos, técnicos e afetivos – para que, dessa soma, se ativassem os consensos e as ambivalências que estruturam qualquer contexto interativo. A questão era como pensar instâncias de integração em um cenário de pandemia alastrada e como prever o diálogo se nossos formatos de convivência e mobilidade estavam limitados. Tivemos, então, que repensar processos de trabalho e redesenhar modos de aproximação. Encontros presenciais tiveram que ser adaptados ao formato virtual, articulações sociais foram organizadas em redes digitais, pesquisas in loco tiveram que ser realizadas individualmente, reuniões de orientação foram conduzidas de modo pontual, uma por vez, e testagens tiveram que ser feitas em todos aqueles que se deslocaram até as comunidades, antes da chegada e ao final da estadia. Em termos práticos, a residência se deu ao longo de um mês. A primeira semana de encontros foi integralmente virtual. Chamamos esse primeiro momento de Seminário de Integração, no qual intercalamos discussões sobre a proposta conceitual e metodológica de trabalho com estudos coletivos sobre o território e particularidades da região. O seminário foi organizado pela equipe de coordenação formada por mim e Luciano Nascimento, junto com o historiador e pedagogo Maurício Manjabosco. A esse trio, somava-se também a artista Maria Helena Bernardes, na condução e no acompanhamento curatorial. Nessa semana inicial, contamos com a participação de moradores de cada distrito, um time formado por diferentes atores sociais, entre professores da rede pública, assistentes de saúde, representantes quilombolas, trabalhadores rurais, ativistas e jovens gestores ligados a cooperativas de agricultura familiar. Contou também com a participação de pesquisadores da região: entre eles, a historiadora osoriense Isabel dos Santos; o geógrafo Augusto Bobsin, residente de Terra de Areia; o agricultor e filósofo Leonardo Dorneles; e as professoras e pesquisadoras Rumi Kubo e Gabriela Peixoto Coelho, antropóloga e bióloga, respectivamente, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS, cujas investigações se centravam no município de Maquiné e arredores. Tratava-se de um encontro voltado à anotação de perspectivas interdisciplinares sobre a paisagem (natural e social) das localidades como um todo. Foram também disponibilizados materiais de estudo – em parceria com a ANAMA, Associação Ação Nascente Maquiné, que implanta e gerencia projetos de importância regional para o desenvolvimento sustentável e preservação do bioma e dos povos tradicionais – e montada uma biblioteca digital focada na região. Além dos estudos, o Seminário serviu para que fossem definidos os distritos onde cada artista iria trabalhar a partir do entrecruzamento com seus campos de discussão. A partir da segunda semana, os artistas deslocaram-se a seus respectivos distritos. No começo, lidaram com uma dilatação do tempo que contrastava com o ritmo da cidade. Residiram individualmente em casas negociadas com a comunidade, montando ali mesmo espaços temporários de trabalho. Encararam diferentes processos. Uns voltavam-se à escuta, outros partiram em derivas atentas ao entorno. Alguns miraram percursos rumo a investigações já sinalizadas. Em alguns casos, mantiveram-se em cursos contínuos, em outros foi preciso alteração de rota. E para acompanhá-los, contavam com o apoio de articuladores sociais, que atuariam como parceiros no processo de pesquisa e abririam canais de diálogo junto a outros moradores – possíveis interlocutores envolvidos com áreas de interesse. Assim, uma espécie de cadeia foi se consolidando. Trabalhar com comunidades menores (nesse caso, todas com menos – ou muito menos – de 10 mil habitantes) era um aspecto que facilitava o reconhecimento das redes já ativas e a construção de outras a partir do projeto. O acesso a amigos de amigos, em grande parte possível pela ação dos articuladores, abriu espaço para a consolidação de novas teias, nas quais surgiam pessoas dispostas ao compartilhamento de vivências. Desses diálogos, ativava-se um fluxo de narrativas: um encontro de diferentes sistemas de produção material e simbólica entre quem visitava e quem recebia. E assim, por meio desses diálogos, acessamos histórias, anotamos crenças, escutamos palpites ou anedotas instrumentais no processo de reconhecimento de um imaginário social e possivelmente úteis para a concepção poética. Instauravam-se, desse modo, canais de revisão de sistemas semânticos em comum – um trabalho em que o próprio coletivo teria que elaborar, via arte, os limites entre aquilo que tinha sentido e aquilo que estava fora do seu campo de significações. Desenvolvidos os trabalhos ao fim do mês, a vontade de organizar pequenos encontros com membros da comunidade já não era mais possível dado o agravamento da pandemia. Frente a um cenário que impossibilitava promover qualquer tipo de reunião, estabelecemos parcerias com as rádios locais para que artistas e interlocutores de lá pudessem comentar suas experiências e relatar os trabalhos realizados. Narrou-se, então, o trabalho via oralidade. Perdeu-se a ativação de percepções espontâneas ativadas junto à obra. Perdeu-se o confronto com a materialidade, em nome de um diálogo distante (ao menos, seguro) com ouvintes da região. Nessa ativação de oralidades, moradores conheceram histórias de localidades próximas ou mais distantes. Familiarizaram-se, pelo relato, com territórios vizinhos nunca visitados e reconheceram-se naquilo que as vidas tinham em comum. E claro, foi importante garantir o registro visual das obras executadas e a coleta de depoimentos daqueles que se envolveram de alguma maneira com o processo de trabalho. Esse material serviu para que se constituísse um arquivo do projeto, para sua memória e futuros debates. Esses modelos de trabalho, que emergem da prática coletiva, que fazem uso de procedimentos etnográficos e operam com a alteridade nunca estiveram isentos de impasses ou contradições. São, sim, desafiadores. Exigem negociação e consenso, reivindicam atenção tanto aos intuitos como aos métodos aplicados e duelam sempre – nesse caso, ao menos – com a brevidade da duração. Requerem, além do mais, um equacionamento de expectativas (nada equivalentes) que colidem entre si – sejam as dos que coordenam o projeto, as dos próprios artistas, as do poder municipal e estatal ou, ainda, as daqueles envolvidos no processo. Dessa maneira, nos colocam diante de nossos sensos comuns, pedem-nos o desvio de juízos, pleiteando a alteração de noções que muitas vezes já temos como dadas. Queria ainda destacar que o caráter de descentralização proposto pelo Casco bebeu da influência de outro programa de residência no qual atuo, no interior rural da Argentina. Concebido por Laura Khalloub e Rodolfo Sala, a residência Comunitaria já contou com cinco edições, propondo sempre a elaboração de trabalhos individuais e simultâneos entre localidades próximas. Essa experiência prévia apontou repercussões efetivas, fruto do modelo de trabalho esparso e capilar. Ao longo dos anos de atuação na região, percebemos uma conquista de autonomia das localidades distritais no que diz respeito ao campo da cultura – povoados e vilarejos política e administrativamente subordinados a uma sede municipal, desassistidos de políticas culturais públicas. O formato de dispersão territorial parece ter disparado conexões entre localidades vizinhas e ter contribuído com a insurgência de dinâmicas de mobilização da sociedade civil na formação de alianças afetivas, externas ao projeto, mas dele decorrentes. Tais alianças têm resultado na constituição de projetos independentes: em ações de revisão histórica, de resgate patrimonial, de organização de arquivos e memoriais e na elaboração de outras programações locais de cultura. Também apostando no formato de dispersão territorial, o Casco buscou convergir uma dinâmica de partilha de modos de vida. Ligou novas redes e atuou como um vetor de encontros, ao colocar a linguagem artística junto a um processo mais amplo de identificações. Na página virtual do Casco, poderemos acessar algumas das produções de trabalho daqueles que atuaram junto conosco. Ainda que a anotação sobre as obras tenha nos exigido a supressão de um universo maior de trajetórias de pesquisa e instâncias de intercâmbio, nosso objetivo é dividir um pouco das experiências que trazemos de cada um dos distritos visitados e compartilhar o trânsito que, mesmo à distância, nos colocou lado a lado.
imagens Tomaz Klotzel (esquerda) e Teresa Siewerdt (direita).
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