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Collaborative
Village Play: a república das melancias
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Nagykamarás, Hungria (2021-2023)
Texto de Lola Fabres
Resumo: "Collaborative Village Play" é um projeto artístico concebido pelas artistas e curadoras Antje Schiffers e Katalin Erdődi, interessados na valorização da vida rural e cultura local que faz uso da arte como ferramenta para engajamento comunitário e discussão social. Visando a organização de uma ação performática, em formato de peça teatral, Collaborative Village Play convida moradores de uma mesma comunidade com o objetivo de explorar e expressar suas próprias narrativas e embates socioeconômicos através de processos partilhados de construção de um roteiro cênico. Este tipo de projeto tem como objetivo não apenas criar peças teatrais, mas também fomentar um senso de comunidade.
Sobre as idealizadoras: Antje Schiffers (Alemanha) é artista visual com prática de imersão em diferentes contextos geográficos e profissionais. Foi co-fundadora do coletivo internacional de artistas Myvillages, com sede em Rotterdam. Desde 2003, Myvillages tem sido pioneira em uma nova forma de produção de arte contemporânea, impulsionada por artistas, com comunidades rurais em todo o mundo, questionando imagens enraizadas e hierarquias culturais entre o rural e o urbano em projetos cooperativos de baixo para cima. Katalin Erdődi é uma curadora independente, dramaturga e escritora baseada em Viena e Budapeste, que trabalha em várias disciplinas nos campos da arte contemporânea e performance. Interessada em arte socialmente engajada, práticas performativas experimentais e intervenções artísticas em espaços públicos, ela realiza projetos em diferentes formatos, desde performances e organização de exposições até abordagens site-specific e orientadas para processos que exploram as possibilidades da arte como prática social e como ferramenta para produção de conhecimento.
Demais colaboradores da obra República das Melancias: Máté Kőrösi, Orsolya Török-Illyés Em cooperação com: István Fehér (ex-diretor de escola, professor de história), Zsuzsa Nagy (cabeleireira, comerciante de melões, política local), Anita Nagy (cabeleireira, professora de religião), János Sallai, Tünde Sallai, Gábor Tóth (agricultores de melancia), Viktória Tóth (estudante, corredora amadora de autocross), grupo de bordado Aranyszál / Fio Dourado, Tímea Frank (atriz), Aladár Gulyás (poeta, colecionador de livros e LPs), Edit Győri e família (trabalhadores sazonais), Piroska Szakál (bordadeira).
Assim que o caminhão estacionava, formava-se rápido uma corrente humana jogando melancias de mão em mão até encherem a caçamba do veículo, despachando a carga em direção ao mercado central do vilarejo... Já tinha algum tempo desde que o cultivo andava rendendo menos do que antes. O transporte havia subido de preço, a concorrência externa andava impactando as vendas locais e vários fazendeiros vinham parando aos poucos de produzir, já que não sobrava mais tanto lucro para aqueles que trabalhavam na terra. Ainda assim, era a produção de melancias que movimentava a maior parte da economia da região. Nagykamarás, pequeno povoado agrícola do condado de Békés, situado no sudeste da Hungria, viu a cultura da produção e da propriedade de terra bastante impactada com a transição do país rumo à economia de mercado, ao se integrar nas estruturas ocidentais após a queda do regime soviético. Hoje em dia, aqueles que trabalhavam nas lavouras – bem como boa parte da comunidade cuja renda estava atrelada à cadeia de produção agrícola – acabavam tendo que reorganizar suas próprias práticas laborais a encontrar modos de adaptação e subsistência. De um jeito ou de outro, a dinâmica local nos meses de verão ainda se via inteiramente demarcada pelo trabalho da colheita. As casas se enchiam de bandejas de melancia para servir à vizinhança; o pessoal do campo se organizava na coleta da safra a abastecer os mercados ou a repassar direto ao comprador; e os que trabalhavam na terra encaravam até jornada noturna, já que coelhos e outros roedores que costumavam invadir as lavouras noite adentro, exigindo que se fizesse guarda para evitar predadores – caso contrário, adentravam roças, mesmo que cercadas, e abocanhavam frutos campo afora inviabilizando-os para o comércio. * * * Cenas como essas, contando da vida no vilarejo de Nagykamarás, podem hoje ser vistas em Collaborative Village Play: Watermelon Republic, obra em vídeo, no qual podemos acessar o dia-a-dia da comunidade, narrado por seus próprios habitantes. Na verdade, mais do que o local onde o filme fora produzido, o pequeno povoado se tornou palco de um trabalho performático que mobilizou a participação de moradores locais, no qual o povo do vilarejo se tornou tanto público como criador do trabalho artístico. Concebido inicialmente pela artista alemã Antje Schiffers, junto com a curadora e dramaturga húngara Katalin Erdődi, Collaborative Village Play é um projeto de caráter nômade que viaja por diferentes localidades rurais do território europeu, desenvolvendo peças performáticas em parceria com as comunidades de cada lugar. Ao longo de um processo coletivo de longa duração, as artistas vêm ativando instâncias de encontros com membros da população local, no intuito de se compartir impressões e conhecimentos sobre o lugar que ocupam. Em Nagykamarás, o projeto partiu de reuniões e instâncias de troca entre as artistas e a comunidade local. Aqueles que toparam a participação começaram a se encontrar sequencialmente para elaborarem em grupo a estrutura da peça. Os encontros iniciais mobilizavam questões que buscavam assinalar aquilo que o coletivo tinha vontade de contar. “Que história se quer compartilhar?”, “o que cada um sabe ou gosta de fazer?”. Dessas incitações, foram nascendo personagens que embaralhavam biografias e saberes específicos com traços de ficção, em uma montagem de quadros diretamente embasados na realidade cotidiana, nas narrativas, problemáticas e papeis sociais que marcavam a vida daqueles que se envolveram na ação. Como consequência, os moradores interpretariam a si mesmos e suas experiências, bem como assumiriam o papel daquilo que mais os identificava ou o que desejassem ser. A obra intitulou-se “A república das Melancias” e foi apresentada em um dia de feira no mercado central Nagykamarás em 2021 – local de comércio e sociabilidade que não deixa de simbolizar o motor econômico e cultural da localidade. Naquele palco, em meio às barracas esparramados pelo espaço, “agricultores, trabalhadores diaristas, políticos locais, cabeleireiros, professores, uma aposentada irritada e uma garota de 13 anos que pratica corrida de carros moldaram a narrativa e a performance” (Schiffers; Erdődi). O plano cênico foi constituído sobre relatos que retomavam as histórias da colheita, histórias de negociação e do labor cotidiano. Resgatou-se também vivências mais antigas – do período de reconstrução do povoado no pós-guerra, em que os habitantes de todo o entorno tiveram que se envolver diretamente nas estratégias de reconstrução, nos debates participativos, na definição de gestão pública e direcionamento de verba. Observou-se também a força da figura e do trabalho feminino em âmbitos de gestão coletiva, ao mesmo tempo em que apareceram relatos daqueles que associavam a participação trabalhista com espaço de atuação e liberdade. Nesse sentido, além do interesse em se pensar a criação de uma prática artística situada, capaz de refletir a identidade cultural e social do povo de Nagykamarás, o trabalho performático de Collaborative Village Play, bem como a obra artística em vídeo realizada por Máté Kőrösi, assumiram um formato multifocal, já que as concepções de leitura e de assimilação sobre o contexto e processos sociais tidos como pano de fundo foram construídas a partir de uma soma de interpretações. Foi assim que peça pôde dar corpo e vida às particularidades de uma comunidade que, embora compartilhasse a mesma história, o fazia de modos distintos. Desse modo, o projeto “República das Melancias” investiu em práticas de colaboração, escuta e produção compartilhada, enfatizando a potência da multiplicidade e dissonância das diferentes vozes e olhares que sempre se agitam na vida em comum. Desde 2021, o projeto tem se desenvolvido em diferentes lugares na Europa rural. No ano de 2022, ele foi realizado na costa atlântica noroeste da Espanha, na Galícia, na cidade de Porto do Son. Nesse contexto, foi a peixaria industrial que se transformou em um palco de teatro. Nele, interpretou-se a obra “A Canção do Leiloeiro de Peixe”, cujo enredo debruçava-se na relação entre a comunidade e o mar. Collaborative Village Play se deu também em Bostelwiebeck, na Alemanha, através da peça “Old Trees Cast Shadows” (2022), onde a mudança de gerações e o futuro de fazendas familiares centenárias vem sendo debatido por seus próprios habitantes. As peças são realizadas, fruídas e discutidas localmente, mas também são feitas para viajar e serem adaptadas a lugares urbanos ou distantes. Aqui não se trata apenas de um deslocamento rumo a museus e contextos expositivos, embora elas também estejam circulando pelos espaços institucionais da arte. O curso de movimento desses projetos também se dá entre as comunidades envolvidas, uma vez que moradores do vilarejo alemão de Bostelwiebeck também acolheram agricultores de húngaros, ativando ações a partir do encontro entre ambas culturas e enfatizando a ideia de conexão translocal. Esse encontro materializou-se em uma coreografia com melancias, baseada no movimento gestual do trabalho na colheita. Assinalando conotações de rede e fluxos de cadeia que marcam a vida na lavoura, as melancias utilizadas na ação coreográfica foram justamente as últimas a serem colhidas em Nagykamarás, demarcando tanto o encerramento como a abertura de uma nova safra e um novo ciclo. Nas palavras de Antje Schiffers e Katalin Erdődi, idealizadoras do projeto, tais ações e peças teatrais também acabam sendo uma ação de interação entre os participantes. Tal como “melancias na lavoura onde foram plantadas, passadas de mão em mão”, a tomada de decisão sobre que peça mostrar, como e onde, faz parte do processo coletivo. Collaborative Village Play é um exemplo de prática artística que vem procurando envolver diretamente as comunidades locais em seu processo criativo. O projeto não apenas destaca a arte e a cultura local, mas também visa fortalecer os laços comunitários e a colaboração dentro de vilarejos rurais, prática essa que desloca o foco dos centros urbanos tradicionais de produção artística para locais muitas vezes negligenciados no discurso artístico contemporâneo.
imagens ©Collaborativevillageplay
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