Documenta
lumbung
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Kassel, Alemanha (2022)
Resumo: Realizada em 2022, a 15ª Documenta de Kassel, assinalou seu interesse em dar ênfase a organizações e iniciativas artísticas de base comunitária, cujos procedimentos fossem guiados por premissas da colaboração e da articulação social. Marcada pela descentralização da figura do curador, a abordagem adotada pelo coletivo indonésio Ruangrupa reuniu práticas de caráter local, interessadas em testar formas de experimentação do formato institucional que vão além dos espaços normativos. Ao fazer isso, mapeou-se, em consequência, uma série de estratégias que tem explorado alternativas de extravaso da arte contemporânea para fora de seus circuitos tradicionais. A partir desses aspectos, o ensaio propõe uma reflexão sobre as potências e desafios enfrentados pela 15ª edição, de modo a avaliar alguns dos fatores que possam ter introduzido novas formas de apreensão das experiências artísticas exibidas, bem como prejudicado a comunicação de seus propósitos.
– O objetivo não é o trabalho de arte, mas a própria cooperação. A frase dita pela então Diretora Geral da Documenta e do Museu Fridericianum, Dr. Sabine Schormann, proferida à plateia de imprensa e convidados que se juntou na arquibancada do Auestadion, estádio esportivo da cidade de Kassel, oficializava a abertura da décima-quinta edição da Documenta. A mostra que abria aquele mesmo dia, no 15 de junho de 2022, expressava seu esforço em mapear um conjunto de práticas artísticas marcadas por premissas da colaboração, da interdisciplinaridade e da articulação social. Ao lado de Schormann, reuniam-se também sobre o palco do evento de abertura membros do Ruangrupa, junto aos demais profissionais que se somaram à equipe da direção artística curatorial. Eu já conhecia o coletivo desde que ele participara da 31ª Bienal de São Paulo, no ano de 2014; mas foi com sua nomeação frente à curadoria da 15ª Documenta que passei a acompanhar sua trajetória mais de perto. O Ruangrupa é um coletivo de artistas indonésios baseado em Jacarta, surgido no ano 2000 logo após o fim do regime autocrático de Suharto. Talvez por ter iniciado sua atuação em meio a um contexto de desestruturação institucional, seu interesse se dirigiu, desde sua formação, à discussão de maneiras para que a arte pudesse circular por espaços distintos àqueles que representavam o circuito formal, exercendo um papel de maior entrosamento social e tornando-se ela mesma um meio para se pensar o desenvolvimento de novas capacidades criativas, de conhecimentos profissionais e pensamento crítico em países cuja infraestrutura institucional da cultura fosse marcada por sua própria fragilidade. Essa inclinação por uma arte “operante em meio à vida cotidiana” (que não mais buscasse uma expressão individual; que não mais tivesse que ser exibida como objeto autônomo; nem vendida a colecionadores ou a museus do estado; mas que buscasse pensar em outras cenas possíveis para o exercício de experimentação estética), não foi só ganhando força no percurso do Ruangrupa, como permitiu que o grupo estabelecesse contato com um universo mais amplo de artistas e coletivos igualmente interessados em experimentar novas formas de mobilização da arte em meio à esfera social por outras localidades (DARMAWAN, et al., 2022, p. 17). Foi nesse sentido que a ideia de ‘cooperação’ frisada no pronunciamento de Dr. Sabine Schormann (elevada a um posto de protagonismo antes mesmo da dita arte em si), sinalizava a ênfase que a décima-quinta Documenta buscava dar aos diferentes modos de organização, operação e funcionamento que vinham sendo testados por práticas artísticas envolvidas em seus próprios territórios, especialmente naqueles onde o estado havia hesitado em prestar suporte para a garantia de sua subsistência. Quer dizer, não se tratava de fazer referência a trabalhos oriundos de coletivos de artistas ou que fossem fruto de processos criativos de autoria compartilhada, reforçados pelo elo do afeto – ao menos não somente. O que estava em xeque na ideia de ‘cooperação’, nos termos da propositiva era especialmente um olhar sobre diferentes tipos de cooperação que vêm sendo estabelecidos entre a esfera da arte e outras esferas produtivas; entre artistas e não-artistas (envolvidos em um mesmo processo criativo); entre a experiência estética e outros públicos configurados no seu entorno imediato; assim como entre a prática da arte e outros desenhos possíveis de práticas institucionais. Mais do que nada, o foco curatorial sustentado sob o lema da ‘cooperação’ direcionava-se com atenção sobre distintos modelos de produção criativa alternativos à formatação do sistema artístico dominante. Desde fevereiro de 2019, momento em que se comunicou quem seriam os responsáveis pela direção artística da próxima edição em Kassel, já se via a circulação de manchetes por revistas e jornais mundo afora que assinalavam algum tipo de ineditismo no fato de se ter um coletivo de artistas do Sul Global assumindo lugar da curadoria; o que sugeriria por si só uma quebra no percurso institucional da Documenta, historicamente acostumado a ter no cargo a figura do curador europeu. Até então, a única exceção à regra havia sido a nomeação de Okwui Enwezor, curador nigeriano responsável pelo projeto exibitivo de 2002; edição emblemática ao debate decolonial. A atuação de Enwezor frente à Documenta havia inclusive mobilizado alguns pontos que seriam ainda mais aprofundados pelo desenho curatorial do Ruangrupa – uma vez que não só deu peso ao mapeamento de artistas atuantes fora do mercado global e do eixo euro-estadunidense, como mostrou um esforço em incorporar no circuito contemporâneo produções até então invisibilizadas que surgiam distantes dos centros urbanos. Para quem lembra, sua propositiva levou ao Documenta Halle iniciativas artísticas entranhadas em vilarejos de Hamdallaye, no Senegal (Huit Facettes), ou na região de Kinshasa, na República Democrática do Congo (Le Group Amos), que de acordo com o curador, assumiam uma posição de vanguarda de um novo tipo de debate na esfera pública global (ENWEZOR, 2019, p. 193). E mesmo que esse perfil de projeto não tivesse assumido protagonismo no projeto curatorial como um todo, tratava-se da sinalização de uma ampliação de foco já em curso: o de perceber esses contextos remotos como locais também propícios à produção de arte contemporânea. De acordo com Enzewor, seria nesses outros espaços sociais, nas vastas periferias de grandes capitais, em vilarejos mais distantes ou mesmo em povoados essencialmente rurais, que se encontraria a presença de “comunidades esquecidas”, “à beira da amnésia oficial”, mas cuja produção simbólica e criativa resguardava a potência de servir como um elo temporal entre passado e presente; bem como um elo espacial entre o local e o global (ENWEZOR, 2019, p. 192). Foi também na 11ª edição que trabalhos de natureza participativa, envolvidos com o que poderíamos chamar de “micropolítica da prática colaborativa” (KESTER, 2011, p. 202) – como os de Tania Bruguera, como O Monumento Bataille de Thomas Hirschhorn, modulado a partir de workshops e treinamento de mídia para jovens turcos, ou como Park Fiction, projeto de longa duração que vinha testando processos de urbanismo e planejamento democrático na área portuária de St. Pauli, na cidade de Hamburgo –, começaram a ganhar maior repercussão no contexto institucional internacional. Na verdade, embora a prática artística vinculada à interação social e colaborativa já viesse encontrando espaço tanto em exposições de peso no marco global, como na argumentação teórica até então, pode-se dizer que, com o projeto conceitual da documenta-fifteen, essas ações ocuparam ainda maior centralidade, não só no plano curatorial, como nas discussões da crítica especializada e do cenário mainstream. Até porque a Documenta sempre ocupou um lugar de ponta de lança enquanto sinalizadora daquilo que poderia ser entendido como correntes experimentais no mundo da arte; e, embora trabalhos artísticos de caráter colaborativo não evidenciassem qualquer novidade em si, haja vista sua proliferação desde os anos 1990, o que a edição do Ruangrupa trazia como particularidade, mais do que a ideia de cooperação como aspecto conceitual da curadoria, era sua vontade de direcionar os holofotes de Kassel sobre a variedade de mecanismos e procedimentos práticos que vinham estruturando esses trabalhos internamente. Em termos metodológicos, o projeto curatorial partiu essencialmente da seleção de 14 coletivos centrais[1]: tratava-se de iniciativas e organizações com um longo tempo de vida, firmemente enraizadas em seus contextos comunitários específicos e diretamente envolvidas com as dinâmicas sociais dos territórios de onde surgiam. Em todos esses casos mapeados, a ideia de localidade era um ponto fundamental, o que nos indicava que a natureza desses coletivos era justamente determinada por seu próprio contexto, bem como pelos públicos específicos mobilizados no entorno de suas esferas de atuação. Com a formação desse ecossistema central (o chamado ‘lumbung members’, que dava o tom do perfil da Documenta), o que se buscou foi precisamente reunir profissionais e agentes da arte que tivessem larga vivência em procedimentos de interação social, de modo que pudessem compartilhar suas estratégias de trabalho e aprender uns com os outros novas abordagens que contribuíssem com seus métodos de pesquisa, com suas agendas de trabalho, suas dificuldades e formas de sobrevivência. Mais que nada, o intuito em agrupar esses coletivos era também o de entender o modo como eles se estruturavam internamente; o tipo de cena cultural que eles vinham esboçando ao seu redor; a forma como eles incorporavam uma pluralidade inter-relacional nos seus processos criativos; e a maneira como vinham firmando a presença de colaboradores externos ao campo da arte junto de si. E assim, ao reunir esse primeiro conjunto de organizações e iniciativas atuantes em diferentes partes do planeta (muitas das quais situadas em regiões de aspecto remoto – desabastecidas de uma infraestrutura formal ligada à arte – e responsáveis por acionar audiências próximas e relativamente pequenas no entorno de suas atividades), agrupava-se, por consequência, um composto de experiências, cada qual comprometida em testar formas de se reestruturar espaços de coprodução artística conectados com práticas sociais do dia-a-dia e de experimentar a possibilidade de formatos institucionais alternativos à produção e à recepção do exercício artístico. Ao mesmo tempo, para se atingir um mapeamento geográfico com algum tipo de abrangência representativa global, a equipe de direção artística contou com os próprios artistas selecionados para ampliar seu campo de pesquisa (campo este estabelecido a partir de seus fluxos de circulação, majoritariamente circunscritos no contexto asiático; que não à toa apareceu com forte presença e até maior consistência no levantamento curatorial). Isso porque, neste caso, buscava-se identificar especialmente a existência de práticas que se viam distantes do circuito de visibilidade do sistema das artes, muitas vezes restritas em seus territórios específicos, o que exigia outro tempo de acesso e de investigação. Buscando a garantia de um estudo de alcance mais amplo – bem como em nome da premissa da descentralização e da recusa da concentração de poder alocado tradicionalmente no setor curatorial – os membros desses primeiros 14 coletivos selecionados foram chamados pela direção a ampliar o convite a outros colaboradores, numa soma que inicialmente alcançou 53 novos participantes (‘lumbung-artists’). Por sua vez, esses foram também incentivados a chamar outros parceiros, grupos ou ativistas, conforme necessário para a realização de suas propostas. E como resultado, a documenta-fifteen alcançou o maior número de artistas na história da instituição, somando um total de 1.500 de colaboradores creditados como participantes. Em suma, ao incorporar esse grupo mais amplo à lista de selecionados, garantiu-se um grau de capilaridade territorial que reforçou um dos fundamentos centrais da proposta conceitual da edição. Com a ampliação de escala, contudo, os outros artistas e coletivos assimilados à mostra (cujos procedimentos de trabalho começavam a se distanciar e se diferenciar entre si) já não necessariamente respondiam aos mesmos preceitos inicialmente estabelecidos pela argumentação curatorial. Quer dizer, nem todos, agora, traziam consigo expertises de imersão contextual ou de envolvimentos comunitários sustentados a longo prazo, aportando alguma dispersão frente ao interesse de discutir a processualidade de projetos comprometidos com a configuração de novas cenas culturais circunscritas fora do eixo hegemônico do sistema das artes, embora aportassem correlações de outros tipos. Nesse sentido, se o intuito da décima-quinta edição era o de debater metodologias operativas através de experimentações coletivas de caráter local, vale avaliar alguns dos fatores que possam ter tanto assegurado, como prejudicado a comunicação de seus propósitos. Assim, uma das perguntas a serem feitas é se a proposta curatorial conseguiu transmitir, na sua complexidade, uma visibilização dos sistemas internos daqueles trabalhos que se estruturavam em procedimentos alargados (calcados na interação social) e, por sua vez, se foi possível, até então, disparar e consolidar um debate crítico a esse respeito. * * * Cheguei em Kassel um dia antes da abertura, sabendo que teria menos de cinco dias para visitação. Esse período talvez até nem fosse breve, caso os trabalhos apresentados não exigissem um tipo de dedicação maior e mais prolongado a quem buscasse compreendê-los no detalhe. Porque em resumo, cada imagem, objeto ou situação guardava muita história de bastidor. Havia, sim, coletivos presentes os quais eu acompanhava de perto há mais tempo. Jatiwangi Art Factory, coletivo indonésio que surgiu no interior rural da indonésia, dispôs algumas peças instalativas e séries de vídeos que contavam sobre as atividades que o grupo vinha desenvolvendo ao longo dos últimos dezessete anos em uma pequena aldeia rural, em processo de industrialização, a algumas horas de Jacarta. Em parceria com os moradores dos vilarejos de Jatiwangi, as ações do coletivo se viam relacionadas a um resgate do valor da argila, enquanto recurso local, por meio de ações comunitárias. Um de seus eventos mais emblemáticos era a organização de uma orquestra local, realizada a cada três anos e tocada com instrumentos feitos em barro pelos próprios habitantes; o que explicava sua proximidade no galpão do Hübner Areal com o coletivo Fondation Sur le Niger, cujas atividades também haviam surgido no entorno de um festival de Música, que ocorria todo mês de fevereiro em Segou, em Mali, no noroeste africano. Contudo, enquanto a espacialização de obras do Jatiwangi Art Factory garantia a apresentação de seus métodos de trabalho (acessados a partir da voz e do relato de habitantes envolvidos no projeto repercutidas pelo espaço exibitivo, especialmente a partir de vídeos e gravações), Fondation Sur le Niger apresentava-se enquanto um conjunto de instalações e esculturas, aparentemente isoladas, sem uma narrativa de contextualização que situasse as interconexões estabelecidas entre elas. Nesse sentido, cabia ao visitante carregar o catálogo em mãos ou conversar com os artistas que transitavam pelo galpão para compreender que por trás daquele grupo de obras que representavam o coletivo (por trás das bandeiras de Homenagem aos caçadores Mandé, realizadas há mais tempo na década de 1990 por Abdoulaye Konaté; por trás da parede forrada de bonecos de marionetes feitas por Yaya Coulibaly; ou por trás dos encontros musicais organizados naquela tenda à estilo tuaregue, estruturada com base na cultura arquitetônica maliana), havia a presença de uma rede de artistas conformada no entorno de uma associação institucional. Além de coordenar eventos musicais, Fondation Sur le Niger tornou-se uma instituição responsável por programas de ensino voltados à formação em artes, comprometida com a configuração de um setor cultural descentralizado e ativo pelo território de Segou. Além do mais, a organização também tocava projetos paralelos ligados a ações de salvaguarda de património e à promoção da economia regional. Pensado por Mamou Daffé, Fondation Sur le Niger havia surgido no ano de 2009 e sua expansão (possível via negociações cooperativas) foi dando corpo ao principal polo de desenvolvimento e fortalecimento cultural e artístico de Mali, chegando a interromper o êxodo de artistas para Bamako, capital do país, ou ao exterior (DARMAWAN, et al., 2022). No entanto, aqueles que percorressem o espaço expositivo e se vissem interessados em compreender a trajetória da iniciativa (seus desafios específicos, suas estratégias pedagógicas, seus funcionamentos práticos e programáticos ou suas reverberações imediatas junto aos habitantes do entorno), sairiam de lá tendo de busca-los através de conversas ou pesquisas de outro tipo. Mesmo que nem as informações expográficas disponíveis, nem a estrutura formal dos trabalhos dispostos provessem dados gerais sobre aquele modelo institucional, de todo modo, a presença do coletivo naquele contexto exibitivo tornava-se um primeiro canal de contato capaz de nos direcionar a esse universo mais amplo. Presente também na mostra, via-se a instalação da iniciativa INLAND montada no Museu de História Natural Ottoneum, cujo formato assumiu uma espécie de “gabinete de curiosidades que abrangia desde conhecimentos ecológicos sobre terras agrícolas e florestais até uma antropologia sobre as possibilidades de declínio e de revigoramento rural” (KONSTFACK, 2022). A expografia prevista buscava situar o contexto de surgimento daqueles trabalhos, embora carecesse de uma maior explicitação de suas particularidades. Digo isso por não se evidenciar o fato de que boa parte das obras havia partido de circunstâncias de troca com produtores e pequenos agricultores rurais de vilarejos pela Espanha, ou por não se encontrar dados sobre essas situações de pesquisa e criação coletiva. Além da obra em vídeo produzida em parceria com Hito Steyerl, Animal Spirits (que recebeu devido destaque até que fora retirado da mostra com o acirramento das polêmicas de antissemitismo), a instalação montada no Ottoneum ambientava as ações promovidas pela iniciativa do INLAND, ativa desde 2009, mas deixava de lado um histórico mais amplo de atividades, ao mesmo tempo que interditava o escrutínio de uma agenda programática que regia o projeto nos seus bastidores, constituído por projetos de residências, conferências internacionais, por uma escola de pastores, uma rádio e uma academia, cujo intuito há mais tempo vem sendo o de pensar outros modelos de ruralidades possíveis e o de contribuir com o desenvolvimento econômico da vida no campo através da promoção de programas artísticos. Quem, como eu, tivesse o desejo de adentrar na discussão sobre o tipo de reverberações que esses projetos vinham surtindo em seus territórios ou sobre a forma como eles vinham sendo vistos pelos habitantes rurais envolvidos com o disparo dessas experiências, saía do Ottoneum com a curiosidade ativada, mas com interrogações em aberto. O argumento curatorial que defendia aquela Documenta como um espaço propício para se cruzar procedimentos testados por coletivos mundo afora – capaz de colocar em xeque estratégias em comum, assim como metodologias de êxito e de fracasso testadas no tempo –, por vezes distraía-se em meio a um composto instalativo que indicava (sem nem sempre situar) um universo mais amplo para além de sua natureza indicial. E assim, ao transitar por essas salas expositivas, era possível intuir que boa parte dos aspectos constituintes daquelas obras em evidência transbordava para muito além do espaço exibitivo – o que por um lado era estimulante, mas por outro, permitia-nos reconhecer a dificuldade que era possibilitar uma compreensão fiel de suas dimensões. O conjunto de coletivos reunidos enfrentava o desafio de como comunicar, condensar e sistematizar o complexo de estratégias e atividades que eles mesmos vinham desenvolvendo ao longo de anos. E, já que a grande maioria carregava consigo um fator de inseparabilidade com os cotidianos com os quais se viam envolvidos, a tarefa central passava a ser o de como contar, materializar, descrever ou narrar ações artísticas específicas, trazendo junto com elas a transparência de seus sistemas operativos de atuação. Tratava-se, afinal de contas, de projetos que pareciam compartilhar entre si o impasse de como resumir espacialmente conteúdos que garantissem a tradução dos processos que os originaram – propícios, mais que nada, a ativarem discussões que buscassem repensar os desafios sobre como apresentar formalmente seus próprios procedimentos. Ao mesmo tempo, é claro que algumas obras em exibição não eram assim tão reféns de mediação e permitiam alcance e compreensão de modo mais imediato. Penso aqui nas narrativas contadas por Agnus Nur Amal, espacializadas na montagem de um cenário instalativo na Grimmwelt Kassel que replicava à própria estrutura cênica montada pelo artista nos seus contextos de contação e encenação de histórias por pequenos povoados da Indonésia. Penso também no contexto interventivo montado na St Kunigundis, onde o grupo Atis Rezistans Ghetto Biennale arranjou um composto de peças escultóricas trazendo parte de sua vivência cultural pela região central de Porto Príncipe (Haiti) ao ambiente de uma igreja católica romana em restauração; ou mesmo no trabalho de Amol K. Patil, que recuperou a tradição e experimentação musical e performática incrustradas e sobrepostas no dia-a-dia de moradores de bairros operários da cidade de Bombaim. Eram, em especial, justamente aquelas peças expostas que surgiam como desdobramentos de estruturas programáticas mais complexas – de caráter quase-institucional ou intitucionalizante – que mais encaravam o impasse de seu próprio acesso e compreensão. Obras resultantes de procedimentos metodológicos fruto de articulações colaborativas desencadeadas a partir de processos dialógicos interativos mais prolongados, ativadores de cenas locais que vinham permitindo o livre fluxo da arte em circunstâncias apartadas dos seus espaços convencionais de mediação, eram aquelas que aparentemente mais evidenciavam opacidade ao alcançar a instância exibitiva. Afinal, dificultava-se nas suas estruturas imagéticas, documentais, objetuais e instalativas a percepção do composto conceitual e organizacional que originava boa parte de seus processos, bem como seus propósitos centrais. E nesse sentido, ao guardar consigo um composto informacional muito mais amplo do que aquele que conseguia ser transposto em transparência, esses trabalhos careceram, por vezes, de exercícios curatoriais que viabilizassem sua síntese: aqueles capazes de representar os mecanismos operativos que regeram seus procedimentos criativos; de apresentar os principais autores envolvidos e suas procedências compartilhadas; de viabilizar as intensões de suas formulações; e de diagramar visual ou textualmente a contextualização das conjunturas territoriais onde se viam inseridos e com as quais lidavam diretamente – para além daquilo que os verbetes dispostos em sala alcançavam informar. Em princípio, eram esses casos específicos que maior potência apresentava para se insuflar debates interessados em reavaliar alternativas possíveis para que a lógica da institucionalidade da arte pudesse rever alguns de seus próprios preceitos, ou ao menos pensar condições de ampliação de suas possibilidades de atuação. Foram nesses casos também que a necessidade de se desenvolver expertises curatoriais comprometidas com um sistema de análise e notação diacrônica se fez mais evidente; ainda que sobrepor a essas obras um olhar sistêmico descritivo encare o desafio de como fazê-lo sem borrar ou neutralizar a força das ambiguidades inerentes de sua concepção – que não culminam, correspondem ou cabem necessariamente em uma totalidade sintética. De todo modo, somente, então, se apreenderia “uma possibilidade de obra (como complexidade) cuja ocorrência e assimilação se dará somente através do conhecimento e da emergência de suas partes” (BERNARDES, 2004). Somado a isso, percebia-se também alguma falta de calibragem na maneira como cada um desses trabalhos era editado e formatado curatorialmente. Como a maioria trazia consigo um perfil radicalmente processual, de longa duração, sendo também diretamente atrelados aos seus contextos específicos, sua contextualização contribuiria com a complexificação da noção de cooperação que vinha sendo mobilizada em cada caso. Às vezes o composto informativo que acompanhava e mediava a obra era farto, às vezes até inexistente. Mas isso não deixava de ser um sintoma da autonomia dada aos coletivos na espacialização de suas produções, fruto do perfil de descentralização da figura do curador. Ao invés de buscar uma estratégia de sistematização da totalidade daquele composto plural e múltiplo de projetos e organizações artísticas ali reunido, a equipe curatorial se afastou da abordagem clássica que “reivindica o controle ou a detenção de uma autoria narrativa centralizadora” (DARMAWAN, 2022b). Na verdade, não só a construção conceitual da mostra e a definição de seus participantes se deu através de um trabalho compartilhado entre artistas e curadores, mas também boa parte desses processos decisórios voltados às dinâmicas de resolução expográfica ocorreram imersas em assembleias e reuniões coletivas onde artistas e equipe de direção, traçaram soluções em comum, a fim de dispensar estruturas organizacionais hierárquicas como postura ideológica. De acordo com sua premissa, a abordagem curatorial e a responsabilidade lumbung residiam nessa coletividade. Como resultado, garantiu-se a liberdade dos artistas e coletivos nas suas soluções de formalização e ocupação do espaço, mas também se deixou de implementar um sistema informacional que compactasse, padronizasse e apresentasse alguns dados centrais para que eles pudessem ser melhor relacionados e comparados entre si, a partir de um esforço de edição curatorial. Nesse sentido, entende-se aqui que a ideia de edição não implicaria um apagamento das vozes que estavam ali sendo exibidas, tampouco no modo como elas seriam pronunciadas. Ao invés disso, seria uma forma de assegurar sua escuta e de comunicar suas circunstâncias e diretrizes internas, haja vista que essas vozes se viam em meio a um contexto cuja escala pedia justamente um exercício de sincronização capaz comunicar pontos de reciprocidades e atravessamentos, mesmo que resguardando a polifonia do conjunto como um todo. Vale também comentar que, junto a essa autonomia de proposição e experimentação garantida internamente, os coletivos selecionados também puderam ofertar programações próprias dentro da agenda da Documenta, promovendo uma variedade de atividades de encontros e a ativação de debates como desdobramento e adensamento dos seus projetos. Em meio a tudo isso, era inegável perceber certo vigor e entusiasmo que se rebatia entre visitantes e participantes – possivelmente fruto da diversidade cultural e identitária impregnada na mostra como um todo. Ao dar visibilidade a um universo insurgente de práticas artísticas que vinham reorganizando cenas culturais mundo afora, que vinham emergindo com força por vilarejos do Camboja, em áreas de fronteira da Palestina, em colônias de imigrantes do Vietnã ou por áreas florestais de conflito armado na Colômbia, o mapeamento feito pelo Ruangrupa trouxe em peso a presença e a revisitação de novas formas de agenciamento do exercício artístico em paisagens socioculturais historicamente colonizadas, o que permitiu com que a representatividade Sul Global viesse com força e assumisse uma escala ainda não vista pelas ruas ou pelos museus de Kassel. Nesse ponto em específico, digo também que a proposta curatorial deu uma chacoalhada. Sufocou o protagonismo europeu, deu relevância a um levantamento de produções de coletivos de caráter local ainda pouco rastreados no circuito mainstream e firmou alguns esforços de inclusão, não só na sala exibitiva, mas também no agenciamento de processos administrativos e decisórios internos. Ao apostar nessa interação entre práticas locais e globais, o ambiente de exposição e visitação tornou-se também um espaço de atividades e de integração, de forma que dentro mesmo dos museus e pelas salas laterais aos ambientes exibitivos, via-se colchão, tapete, travesseiro e estrutura de cozinha no meio de um tanto de dormitório improvisado. Porque ao longo dos cem dias, a mostra se ampliou para além do que estava exposto e viabilizou a presença desses profissionais pela cidade de Kassel, ativando espaços de encontros para que se pudessem criar elos mais diretos entre a rede de artistas e colaboradores envolvidos com a experiência trazida por cada um. Nesse fluxo, dividindo salas de exposição, dormindo nos mesmos cômodos, frequentando as mesmas festas ou convivendo nos mesmos ambientes de sociabilidade, as tais transferências de saberes, de vivências e de processos de trabalho (que nem sempre alcançavam seu próprio escrutínio no âmbito expositivo) tiveram menor interlocução com o visitante externo, mas sem dúvida correram soltas pelas redes internas do ecossistema montado por essa edição. Além do mais, talvez um dos pontos mais disruptivos levantados na edição de 2022 pode ter sido sua aposta em um modelo de descentralização orçamentária. Com o custo de 43 milhões de euros financiados pelo estado alemão, a dita documenta-lumbung garantiu uma remexida na distribuição dos recursos de produção, pondo pressão para que parte do budget pudesse ser destinado a territórios fora de Kassel: às localidades onde surgiram as práticas mapeadas e onde os coletivos tinham como base de atuação. Aliás, vale lembrar que o termo lumbung (mobilizado como uma espécie de título do projeto como um todo) fazia referência a uma prática tradicional na Indonésia de armazenamento comunal do excedente da colheita de arroz – já que a decisão sobre como seria utilizado o acúmulo da colheita sobressalente se dava no coletivo, pela voz de decisão da própria comunidade produtora. No contexto da Documenta, cada coletivo recebeu uma mesma parcela (cerca de US$ 25.000) para a produção de seus trabalhos; ao mesmo tempo em que uma reserva comum fora estabelecida para cobrir despesas resultantes (KHALIL, 2022). No entanto, mais que o compartilhamento da gestão financeira, o acordo firmado pela direção curatorial permitia com que parte do monte orçamentário pudesse ser destinado à subsistência das atividades dos coletivos residentes fora da Alemanha. E assim, conectando seus próprios territórios por um lado, e Kassel por outro, pode-se redistribuir esses recursos em um fluxo circular de capital econômico cultural entre ambos as localidades (DARMAWAN, et al., 2022, p. 31) – num gesto de descentralização financeira inédito na história da instituição. Com a irradiação orçamentária, a documenta-fifteen dava margem à ampliação do seu alcance e à propagação do seu impacto para além dos limites geográficos e institucionais previstos. Poderíamos até imaginar estruturas de coletivos indonésios garantindo a ampliação de suas agendas programáticas; ou artistas de Mali recebendo verba para dar continuidade a projetos em suspensão – mas falo aqui hipoteticamente, já que o mapeamento do direcionamento de verbas exigiria um rastreamento caso a caso; algo que por fim nos apresentou um bom problema: o de como organizar o acompanhamento das reverberações que essa realocação orçamentária possa ter impulsionado, já que esse mapeamento viabilizaria ainda uma maior precisão sobre a real dimensão da Documenta de 2022. Com tudo isso, talvez não seja tão surpreendente que essa tomada de espaço (que reconfigurou procedimentos administrativos e orçamentários internos, que transformou salas de museus em alojamentos temporários e colocou nas paredes da Documenta nomes que possivelmente não teriam lugar se dependessem do seu reconhecimento e circulação pelo meio artístico internacional) tenha disparado algum incômodo em profissionais do circuito e na estrutura cultural e burocrática alemã. Tampouco é de se estranhar que, uma vez aberta, a documenta-fifteen tenha atraído um tanto de críticas relativas à reestruturação operacional proposta pela equipe de direção artística, como a uma suposta falta de preocupação estética da experiência exibitiva. Além do mais, como bem sabemos, a mostra também se tornou foco de escândalos disparados por acusações antissemitas que ofuscaram o debate posto em xeque pelo plano curatorial. Na verdade, antes mesmo da abertura oficial da exposição, a mostra já lidava com críticas à postura de coletivos como The Question of Funding – cuja trajetória de mais de vinte anos tem se voltado a refletir sobre a dependência de centros artísticos palestinos à financiamentos estrangeiros. Por expressar apoio ao Movimento BDS (Movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções ao Estado de Israel), o posicionamento do coletivo foi visto por moradores locais e pela Aliança contra o Antissemitismo de Kassel como um reflexo ideológico da documenta-fifteen (lembrando aqui que o BDS e o antissemitismo são igualados no marco formal legislativo do estado Alemão, o que por si só, abre boa margem para discussão). Desde então, comentários críticos que surgiram do âmbito digital começaram a ganhar fôlego e a serem repercutidos pela imprensa alemã. Uma vez aberta a mostra, aqueles que vinham defendendo que a edição lumbung sinalizava uma conduta de oposição ao povo judaico, encontrou maior força de argumentação ao ver na programação da Casa de Cinema Independente Gloria-Kino, a presença dos filmes Tokyo Reels (projeto que vem relatando histórias de conflitos palestinos a partir da revisitação de arquivos de locais). Instalada a crise, por um lado, cada vez mais foram aparecendo pronunciamentos de cobrança do compromisso institucional em respeito à pauta antissemita e ao respeito identitário-racial (que começou a pressionar pela retirada de trabalhos). Por outro, mobilizavam-se, em decorrência, reivindicações em apoio ao projeto, bem como em nome da liberdade de expressão. A principal resposta à polêmica dada pela equipe curatorial foi a elaboração de um comitê de avaliação de cenário, formado por artistas, intelectuais e docentes, visando instalar uma discussão aberta sobre antissemitismo, semitismo, islamofobia, formas de censura e racismo, com o intuito de aprofundar o debate e de revisar a noção de antissemitismo de acordo com configurações geopolíticas mais atuais. O fórum procurou não só reunir um “painel de especialistas com opiniões divergentes que pudessem iluminar e discutir as premissas iniciais desse debate para melhor compreender as posições envolvidas”, como também confrontar e problematizar as denúncias em sua amplitude (RUANGRUPA, 2022). Nesse processo, ao mesmo tempo em que se reprovou a ausência de membros da direção artística nos foros organizados; ouviu-se também críticas rebatidas pela própria equipe curatorial contra a resistência expressa pelo Conselho Central e por alguns meios de comunicação à conceituação multidirecional dos painéis planejados do fórum, que tinham como intuito trazer a reunião de perspectivas distintas que sobrepusessem tanto aquelas afetadas pelo antissemitismo, como aquelas afetadas pelo racismo anti-muçulmano ou anti-palestino. O escândalo atingiu seu ápice quando se ergueu o banner Justiça Popular, obra do coletivo indonésio Taring Padi (instituto fundado em 1998, em aliança com jovens artistas, comunidades agrícolas e pesqueiras, em resposta às convulsões sociopolíticas da era Reformasi na Indonésia) em plena praça central de Kassel. Uma vez estendida aquela grande lona pela Friedrichsplatz, cuja pintura mural trazia a representação pictórica da era militar de Suharto (a partir de uma narrativa que incluía a participação de serviços secretos ocidentais e da própria agência de inteligência israelense em apoio ao regime da Nova Ordem da Indonésia, como responsáveis por sustentar um regime violento e genocida em nome do anticomunismo), as imagens nela representadas não deixaram espaço para contestação. Os oprimidos do período nazista apareceram, na pintura coletiva de Taring Padi, como opressores dos dias atuais – e tudo isso tocou fundo nos fantasmas da história nazista que ainda guiam os marcos históricos e legais da Alemanha, aos quais a Documenta até hoje está sujeita (KHALIL, 2022). Vale lembrar que a Documenta nasceu de uma conjuntura bem específica, no cenário do pós Segunda-guerra, no compromisso com sua própria reparação e com seu reposicionamento geopolítico na conjuntura global. Financiada com verba pública do estado Alemão, a luta contra o discurso antissemita, hoje balizada em lei, é tida como um compromisso institucional da Documenta. O caso implodiu Alemanha afora. Roubou o espaço da reflexão da crítica especializada e chamou a atenção de políticos alemães e israelenses, assumindo lugar nos noticiários televisivos e no jornalismo internacional. Profissionais como o diretor do Museu Anne Frank, apoiado pela artista Hito Steyrl, fizeram críticas severas à conduta da crise. Apontaram à urgência por uma conduta deliberativa e sinalizaram a morosidade e as falhas organizacionais de supervisão e responsabilidade por parte da direção curatorial. Sobre o mural Justiça Popular, o prefeito de Kassel logo colocou um manto preto, escondendo a imagem. Em seguida, o Ministro da Cultura ordenou a retirada da obra de forma definitiva – o que se deu sob gritos de “Palestina-livre” pronunciados pela praça num coro proferido em alemão. O episódio também desencadeou na renúncia de Sabine Schormann, então Diretora Geral da Documenta, o que não deixava de situar a décima-quinta edição no meio de uma guerra cultural geopolítica, cujos efeitos imediatos implicaram numa tentativa de deslegitimação do projeto expositivo como um todo. A enxurrada de críticas que assombrou o programa do início ao fim, ao menos durante o período de vigência da exposição, ofuscou em grande medida o debate do conteúdo do projeto e suas intenções, registrando um fechamento traumático tanto aos organizadores e participantes do evento, como à instituição e ao estado financiador. Com isso, sob alegações de não prestar agilidade, nem comunicar deliberações de caráter mais determinante, a responsabilidade do conflito recaiu sobre o Ruangrupa. Para muitos, a estrutura descentralizada da sua gestão foi um dos principais “motivos da perda do controle da crise” (FARAGO, 2022). No entanto, mais que nada, a resposta dada pela equipe curatorial era dialógica por excelência. Para se avaliar assuntos marcados por sua complexidade (diferentemente interpretados pelos sujeitos que se vêm neles envolvidos), o grupo havia justamente defendido a necessidade da formação de uma comitiva interdisciplinar capaz de produzir análises que respeitassem e problematizassem a pluralidade ótica sociocultural em jogo e que também garantissem o pronunciamento das falas de quem se entendesse oprimido, independente de quem fosse o opressor. Ao invés de buscar uma solução definitiva, o objetivo tornava-se o próprio processo de rebatimento e de aproximação de distintos pontos de vista. Ao invés do apagamento de imagens ou do silenciamento de vozes, sustentar aquela tensão seria entendê-la como uma possível catalisadora de um processo de revisão conceitual e institucional sobre o tema – embora qualquer conduta de sustentação, naquele caso, não deixasse de demarcar contraposição aos marcos legais. Mas como não havia como deixar de ser, assim como qualquer conduta dialógica, na compreensão conceitual do termo, a proposta de resposta dada pelo Ruangrupa operava na contramão da urgência da crise instalada. Até porque, a temporalidade da dialogia não costuma agir de forma imediata, tampouco localizar resoluções únicas e definitivas, tornando-se, assim, incapaz de servir às pressas e pressões da imprensa, da esfera pública ou do próprio campo político e institucional. Ao se recusar qualquer tentativa de sustentação da divergência, optou-se pela supressão das nuances que marcavam a discordância, pela desmobilização do pronunciamento das diferentes concepções culturais então envolvidas, de suas perspectivas e discrepâncias. E enquanto isso, viu-se o Ruangrupa sendo posicionado como alvo, na medida em que se apontava ao seu método curatorial como “o principal motivo do colapso” (FARAGO, 2022). * * * Ainda assim, o que se apresentou na documenta-lumbung – mesmo que ofuscado pelas polêmicas disparadas e independente de possíveis empecilhos hermenêuticos referentes à compreensão da complexidade de parte dos trabalhos apresentados – não deixou de situar nesse marco público internacional de referência um composto de estratégias artísticas que vinham excedendo à simulação dos espaços normativos da arte contemporânea e que vinham aportando, por sua vez, com a apresentação de um leque metodológico operativo bastante útil para se pensar em alternativas de descentralização da arte para além de seus circuitos específicos. Afinal, ao reunir projetos com muita experiência prática sobre como encarar a ideia de descentralizar a arte para além de suas balizas oficiais (projetos responsáveis por consolidar cenas específicas há mais de dez, vinte ou trinta anos), o que se viu em exibição era um conglomerado de exercícios capacitados a situar contextos remotos (como os seus) enquanto locais propícios à produção de arte contemporânea – um movimento interessado na emancipação artística da hegemonia urbana e do eixo global. Justo Pastor Mellado, teórico e curador chileno, também diretor do Museu Nacional de Belas Artes do Chile entre os anos de 2002 e 2010, tem se debruçado teoricamente na análise de iniciativas artísticas alocadas em contextos distantes das cenas oficiais já mapeadas pelo eixo global e discutido a importância de se refletir sobre a produção e gestão da arte em contextos locais, fora dos circuitos dominantes, a fim de reforçar a importância de elaborarmos, coletivamente, outros esboços institucionais possíveis à prática artística. Mellado também tem destacado a importância em se dar “voz pública a interlocutores” que tem se dedicado a “revisar e organizar conceitualmente” (MELLADO, 2015, p. 9) programas artísticos que tem surgido, com algum grau de autonomia, em espaços marcados por “taxas mínimas de institucionalização” (MELLADO, 2015, p. 203). Projetos artísticos como esses, que envolvem diferentes atores sociais (em catalisações recíprocas entre artistas, curadores, gestores públicos e comunidades locais), além de promoverem um contato com outras formas de representação e interpretação da realidade local, contribuem não só com o questionamento das narrativas dominantes, como têm proposto maneiras de se recuperar e redesenhar a demanda cultural num sentido mais amplo (MELLADO, 2015, p. 169). E assim, apresentam-nos situações de interpelação negociadoras no seio de suas comunidades que, ao trabalhar com um material simbólico específico, acabam dando conta de um estado determinado de manifestação de um imaginário local (MELLADO, 2015, p. 165). E foi justamente isso que se viu como esforço central: um esforço, da Documenta e de seus curadores, em se dedicar à leitura desses formatos de produção capazes de oferecer outros modos “de validação da arte, enquanto um exercício de reflexão específico” (MELLADO, 2015, p.11) – e de inseri-los em um contexto social e histórico próprio, de modo a promover uma mobilidade institucional dessas cenas locais. Até porque, mais que justificar geopoliticamente essas outras zonas de produtividade, o que essa Documenta permitiu foi um contato com espaços de experimentação destinados a qualificar a formação de cenas locais (MELLADO, 2015, p. 87), comprometidos não só em testar outros formatos de produção e de recepção, como em desenvolver pesquisas interessadas em compartilhar experiências estéticas junto de grupos sociais que se aproximam por tramas simbólicas em comum. Mas apenas com intuito de visibilizar a potência da décima-quinta edição da Documenta (e de contribuir com a elaboração de outros projetos expositivos similares no futuro), vale pontuar que a dimensão do esforço de descentralização lumbung talvez tenha se tornado, ela mesmo, uma faca de dois gumes. Isso porque ao mesmo tempo em que se postulava como fator disruptivo (de capilaridade, de polifonia, de repasses de verba para além dos limites institucionais, bem como de abrangência representativa), fora também ela uma das principiais responsáveis por dificultar a garantia de sua própria inteligibilidade – já que mergulhar na complexidade estrutural de 1500 artistas torna-se uma tarefa muito mais árdua do que o aprofundamento que pode ser exercido em grupos mais restritos. É dizer, é possível que a escala assumida (ainda que tenha acarretado um real gesto de inclusão, tornando-se ainda um meio para formação e ampliação de redes), tenha sido causa central do entrave de sua própria apreensão. Esse mesmo ponto foi postulado por Ade Darmawan (membro do Ruangrupa), falando em nome do coletivo, em entrevista para The Art Newspaper (DARMAWAN, 2022a), quando assumiu que a dimensão alcançada seria talvez seu principal ponto de revisão, olhando em retrospectiva. E assim, ao invés de alcançar uma comunicação explícita do seu próprio vigor, o projeto da décima-quinta edição acabou ocasionando a formulação de uma reação crítica (majoritariamente dicotômica) cujas leituras voltaram-se a percebê-lo ou pela lógica da reprovação (justificada por uma suposta ausência de valor artístico, sem encontrar no projeto curatorial o fator estético em prevalência), ou pelo olhar idealista, encantado com a premissa colaborativa. Ao se afastar da lógica da produção de uma “obra” artística – da lógica da escultura, do mural, do livro, do vídeo ou de algum objeto tangível como único resultado final – boa parte dos projetos então agrupados apontavam para o que Gregory Shollete já havia definido como “coreografias das próprias experiências sociais” sendo o “próprio social o principal meio e o material de expressão” (SHOLETTE, 2015). O reconhecimento, porém, do coeficiente artístico fruto dessas instâncias criativas parece ainda ser difícil de ser delimitado ou compreendido, ao menos tomando como referência o modo como parte da crítica especializada organizou seus argumentos, já que além da primazia do critério estético (na recepção), o centro de sua resistência parecia também se localizar na dissolução dos limites autorais, na difusão de fronteira do campo de pertencimento dessas ações e no hábito de se buscar compreender o formato coletivo de colaboração como atributo único. Tais processos, frequentemente agenciados na produção contemporânea recente, imbricados em articulações coletivas, em vez de serem “auxiliares ou colapsados pela estrutura formal de um objeto físico”, passam a pedir que sejam tematizados enquanto tal (KESTER, 2011, p. 24). E talvez justamente por isso, pela não exigência da materialidade, por sua “opacidade fundamental” (LADDAGA, 2010, p. 121), por imporem a inviabilidade de sua transposição na íntegra e, em especial, por armazenarem neles mesmos a resultante de processos dialógicos, esse conjunto de fatores acaba levando-nos a entender que essas práticas aportam, ainda hoje, desafios ao exercício hermenêutico que os narra, os exibe e os analisa criticamente. E ainda que a compreensão de arte enquanto processo já fosse há tempos consolidada (ainda que exercícios poéticos marcados por atributos da participação já fossem incorporados há algumas décadas na história da arte), mesmo assim, boa parte dos comentários sobre a mostra oscilou entre posturas de valorização da ideia de colaboração em si (como se a noção de colaboração pudesse servir como categoria ou valor por si só), e argumentos de desautorização das solutivas formais – de modo que parte das alegações críticas disparadas durante o período de vigência da mostra passaram a adjetivá-la como “visualmente decepcionante”, marcada por uma “estética seca” (KHALIL, 2022), ou próxima à estética de uma ONG (DAVIS, 2022). Tanto uma, como a outra, pareciam esbarrar e frear na superfície externa desses projetos, incorrendo no ofuscamento dos seus sentidos mais fundamentais, bem como daquilo que eles mobilizavam no seu entorno. “A imprensa alemã tem sido mordaz. Os escritores dos folhetins nacionais do país classificaram o programa como um “fracasso”, uma “desgraça”, “catastrófico” e ainda pior. No entanto, a Documenta 15 teve uma recepção mais calorosa na imprensa de arte de língua inglesa, onde foi chamada de “notável” e “afirmativa da vida”, e os críticos se deliciaram com seu desdém pelo objeto de arte fetichizado e, por extensão, pelo estabelecimento de arte global. [...] A coletividade foi tratada como um fim em si mesma: Estávamos aqui, como nos exortava Ruangrupa, para “fazer amigos, não arte!” Bem, isso parece divertido. Mas e se a arte de seus amigos for ruim? Essa “controversa” Documenta foi – para falar do que os visitantes realmente viram em Kassel – a mais segura e chata deste século, como evidenciado pela discussão quase inexistente em torno de qualquer arte em exibição. [...] Tudo tem sido uma vergonha terrível, mas por que alguém de fora da Alemanha deveria se preocupar? Porque a Documenta sempre foi pioneira - e a edição deste ano certamente apontou para uma mudança maior, vista também em nossos museus, nossas escolas de arte e nossas revistas, longe da ambição estética e seriedade intelectual e em direção aos confortos mais fáceis de união, defesa e diversão. Se a arte de seus amigos é uma droga, isso não é grande coisa – porque estar juntos é mais importante do que fazer algo bem. E se a imprensa alemã diz que a arte de seus amigos é uma droga, tudo bem também – tranquilizador, na verdade, como evidência de que esse mundo podre de colonizadores não tem lugar para nós. [...] A incompreensão e a raiva que esse show suscitou são a prova que eles sempre quiseram não ter um futuro comum”. (FARAGO, 2022) Não tenho bem certeza se críticas como as exercidas por Jason Farago, correspondente do New York Times, puderam perceber que o que esses “amigos” estavam mostrando era justamente processos criativos que vinham abrindo espaços de recuperação de demandas culturais nos seus entornos específicos, bem como compartilhando procedimentos que documentavam em primeira mão um conjunto de alternativas artísticas programáticas que emergiam e garantiam sua existência em conjunturas de conflito ou escassez – tal como era o caso dos trabalhos desenvolvidos ao longo de anos na região de Chocó, junto a áreas de disputa territorial no litoral colombiano (Más Arte Más Acción); ou das produções que têm surgido dos intercâmbios interdisciplinares entre cientistas e artistas chineses, a fim de discutir a força da presença d’água na conformação da vida humana ao seu redor (Cao Minghao e Chen Jiajun). Também não sei se a suposta ausência de uma “seriedade intelectual” que caminharia em “direção aos confortos mais fáceis de união, defesa e diversão”, mencionada pelo crítico, faria jus para definir alguns dos processos de compartilhamento presentes na mostra – como as estruturas coletivas acionadas em nome da luta por políticas de emancipação dos povos aborígenes (expresso no The Aboriginal Tent Embassy do australiano Richard Bell e em suas narrativas pictóricas); como os esforços de levantamento de histórias orais e narrativas folclóricas coletadas por terras palestinas (trabalho de Jumana Emil Abboud, voltado a reconfigurar mitologias alternativas em cenários de tensão permanentes); ou como as pesquisas direcionadas aos ecossistemas sociais e naturais que vieram se estruturando em localidades previamente ocupadas por instalações militares no território coreano (IkkibawiKrrr). O que vale frisar é que não se tratava só de um composto de colaborações via afeto e amizade – talvez essa seja a leitura mais simplicista, ainda que houvesse um pronunciamento explícito em nome da valoração desses preceitos como motor criativo (embora não como fim). Na realidade, boa parte da exaltação conceitual em nome da colaboração trazia consigo diretrizes cooperativas que tem testando a aproximação do exercício artístico com outros agentes do campo social, bem como com outros saberes e áreas de conhecimento, criando novos elos de contato com sujeitos distintos àqueles frequentadores da estrutura institucional do mundo da arte – diretrizes essas que nos ajudam a pensar os modos como a disciplina da arte tem dialogado e exercido atravessamentos para além dos seus limites específicos. Exemplos como esses, onde o trabalho artístico começa a agenciar esferas de negociação e de envolvimento direto com sujeitos externos ao circuito artístico (ao mesmo tempo em que passa a coordenar âmbitos de articulação institucional e procedimental como seus aspectos integrantes), passa também a nos requerer formas de identificar a complexidade de seus sistemas internos. Com isso em mente, vale indagar o motivo de se trazer à instituição – ao âmbito expositivo – trabalhos que parecem concentrar sua essência nos territórios onde se encontram e cuja localização principal é a comunidade que os abriga. Qual o sentido de aglutinar em obra processualidades que evidenciam dimensões mais amplas? Qual o sentido de deslocá-las para fora de seus contextos ou, mais ainda (a famigerada pergunta), de chamá-las de arte? Creio que se entendermos boa parte desses projetos por seu caráter prototípico, por sua potência indicial (quase como esboços de modelos institucionais possíveis), incorporá-los na agenda exibitiva de instituições do cenário artístico (espaços por excelência referenciais para o debate sobre o que o campo vem agenciando na conjuntura vigente) é compreender onde que muitos artistas contemporâneos vêm direcionando suas forças de produção, bem como reconhecer a relevância desses processos enquanto marcos de alternativas ao exercício artístico. Assim, parece ser justamente quando essas práticas ocupam lugares de legitimidade e visibilização que se acaba garantindo a demarcação do seu debate no marco global, de modo a situar o próprio sistema e seus agentes frente à frente com um conjunto de exercícios responsáveis pela criação de cenas alternativas à lógica artística institucional que se vê demarcada pela síndrome do fetiche pela formação de espaços de audiências (MELLADO, 2015, p. 87), acostumada com a mobilização da produção de arte apenas enquanto commodity ou espetáculo (MELLADO, 2015, p.45). Nesse sentido, o que a documenta-fifteen parece sugerir, para além de um levantamento significativo de mapeamento territorial e de incorporação inclusiva de práticas operantes fora das balizas de visibilidade do circuito da arte, é precisamente um contato com metodologias que, ao se verem reunidas em um só contexto expositivo, atuam como uma escola de novas formas de auto-organização: como laboratórios de “articulações facilitadas ou negociadas por desenhos institucionais que artistas exercem enquanto produção” (LADDAGA, p. 15). Nessa totalidade de coletivos, iniciativas e organizações deslocados do eixo global, a soma dos projetos incorporados, na sua diversidade, acabou apresentando-nos um conjunto de esforços políticos e propositivos sustentados a longo prazo, bem como nos servindo de métodos de conhecimento que há tempos vêm instalando, naturalizando e enraizando recursos simbólicos e materiais em seus espaços sociais circunscritos. Ao sinalizar a relevância do seu próprio trabalho de mapeamento, essa edição também tornou visível o desafio que se enfrenta no momento em que se busca dar síntese, inteligibilidade e transparência aos aspectos estruturais dos projetos trazidos a público, utilizando-se, para esse fim, do espaço expositivo de uma das maiores instituições internacionais da arte contemporânea. As possibilidades de se esquivar desses impasses, contudo, não parecem poder ser encontradas ao se retornar ao modelo hierárquico centralizado da direção artística curatorial, nem ao se resgatar a lógica da concentração do repasse orçamentário em seus limites geográficos e institucionais circunscritos, tampouco ao se evitar processos decisórios de natureza multifocal e compartilhada. Pelo contrário. Parecem residir justamente no aprimoramento e na insistência dessas premissas, já que elas evidenciam na prática os preceitos conceituais que se buscava discutir. Aliás, o redesenho operacional implementado pela gestão lumbung afirmou-se, ele mesmo, como o principal laboratório metodológico trazido à Documenta – dentre os tantos outros deslocados para o marco exibitivo – ao evidenciar em si mesmo uma espécie de experimentação prática das expertises conceituais e procedimentais de tudo aquilo que o Ruangrupa vinha mapeando e investigando. Assim, refletiu também o principal ponto de debate por ele anunciado: o interesse em voltar seu olhar sobre alternativas institucionais possíveis, capazes de lançar um estímulo à descentralização da prática artística e de complexificar as interfaces de interlocução que ela mesmo estabelece com aquilo que se encontra ao seu redor.
imagens ©Lola Fabres
Nota
[1] Britto Arts Trust; FAFSWAG; Fondation Festival Sur Le Niger; Gudskul; INLAND; Instituto de Artivismo Hannah Arendt; Jatiwangi art Factory; Más Arte Más Acción; OFF-Biennale Budapest; Project Art Works; The Question of Funding; Trampoline House; Wajukuu Art Project; ZK/U – Center for Art and Urbanistics
Bibliografia
DARMAWAN, Ade. Entrevista concedida à The Art Newspaper. <https://www.theartnewspaper.com/2022/09/22/documenta-15-closes-curators-ruangrupa-exhibition-kassel> [Acessed December, 17, 2022.]
KHALIL, Nadine. The DIY Chaos of Documenta 15. In: Frieze.https://www.frieze.com/article/diy-chaos-documenta-15-2022-review> [Accessed December 17, 2022.DAVIS, Ben. Documenta 15’s Focus on Populist Art Opens the Door to Art Worlds You Don’t Otherwise See—and May Not Always Want to. < https://news.artnet.com/art-world/documenta-15-review-2140149> [Acessed January, 20, 2023.]
FARAGO, Jason. The World’s Most Prestigious Art Exhibition Is Over. Maybe Forever. In: The New York Times.<https://www.nytimes.com/2022/09/23/arts/design/documenta-15.html> [Acessed November, 25, 2022.]
MELLADO, Justo Pastor. Escenas Locales: ficción, história y política en la gestión de arte contemporáneo. Serra Maria de Punilla: Curatoría Forense, 2015, p. 45
LADDAGA, Reinaldo. Estática de la emergencia: la formación de otra cultura de las artes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.