Esculturas
em processo
-
imagem acima ©Image from APG archive, box 1.2 (a), 5/5 Mapmagazine
West Lothian, Escócia (1975-2006)
Resumo: O ensaio relata a experiência de John Latham, artista conceitual britânico, durante os anos em que atuou na Agência de Desenvolvimento e Urbanismo Federal da Escócia. Foi no departamento escocês que Latham conduziu um trabalho de pesquisa e produção artística onde se envolveu com a paisagem de West Lothian, especialmente com os acúmulos de xisto e betume, resíduos da atividade industrial da região. A experiência foi resultado do seu envolvimento com o APG (Artist Placement Group), projeto fundado por ele e sua companheira Barbara Steveni, na década de 1960, no qual artistas passavam a ingressar no cotidiano de empresas, instituições públicas, indústrias e corporações, alocando seus processos de criação em instâncias de troca com agentes de outras esferas produtivas.
Idealizado por Barbara Steveni – artista da então Pérsia bastante envolvida com a cena artística conceitual britânica – o APG surgiu em 1966, coordenando experiências artísticas situadas no dia-a-dia de ambientes corporativos e governamentais de caráter não artístico. Fundado com o apoio de seu marido John Latham, o Artist Placement Group (APG) foi uma organização pioneira que passou a alocar a presença de artistas visuais dentro da rotina de fábricas, escritórios, comércios e departamentos públicos, de modo que pudessem trabalhar como parte integrante dessas organizações. Em decorrência à iniciativa, foi no Departamento de Renovação Urbana e Desenvolvimento Federal Escocês que John Latham (artista e professor universitário da Saint Martin’s School of Art nascido na Zâmbia) exerceu uma de suas imersões. A ideia era que artista e entorno se afetassem reciprocamente disparando a abertura de novos processos de criação associados a esse contexto. Firmada a vinculação contratual entre o Scotish Office e o APG, o convite era para que John Latham passasse alguns meses se familiarizando com as demandas do departamento, sua gente e seus procedimentos, para que então apresentasse um relatório de análise e propositivas de ação que poderiam ou não ampliar o período de permanência do artista na agência estatal. Chegado na instituição no ano de 1975, foi nela que Latham começou a entrar em contato, via imagens de satélites, relatórios e representações cartográficas, com uma área de depósito de lixo um tanto quanto atípica próxima de Edimburgo, no sul da Escócia. O cenário era uma grande extensão de terra, ocupada por montanhas de sedimentos e materiais rochosos multicoloridos, ladeados por precipícios recobertos por uma flora bastante singular. Trabalhando como um servidor civil, Latham deveria emitir um parecer a respeito do problema dos amontoados de resíduos minerais intensamente acumulados nas regiões de Midlothian e West Lothian, resultantes das primeiras indústrias de petróleo de lá, já que o governo do Reino Unido havia incumbido ao departamento escocês a elaboração de um plano de remoção desses rejeitos dentro de um prazo de dez anos. Craig Richardson, pesquisador que se debruçou sobre as documentações do arquivo do APG, explica que essas montanhas de lixo, chamadas de bings, formadas majoritariamente por xisto, betume e carvão, se originaram da produção de resíduos resultante de um processo de mineração de meados do século XIX, projetado para extrair e destilar produtos como óleo de parafina de xisto petrolífero. Próximo à década de 1860, mais de meio milhão de barris de óleo de xisto bruto eram produzidos anualmente e a produção continuou nesse ritmo até que as minas começaram a fechar entre a década de 1920 e o início da década de 1960 (RICHARDSON, 2012). No momento em que Latham começou a atuar na agência escocesa, havia no local o total de dezenove montes minerais. Para o historiador, tinha monte que havia alcançado uma altura tão grande que chegava a lembrar um vulcão extinto (RICHARDSON, 2012). Trabalhando no Departamento de Renovação Urbana, a incumbência do artista era que ele participasse do processo decisório que definiria o que fazer com aquela área de refugo mineral, de modo que, após alguns meses de visitas in loco, de observação e levantamentos topográficos, recomendou que as montanhas fossem preservadas, sugestão que entrava em choque com a demanda de remoção já estabelecida mas que, ao mesmo tempo, apontava uma alternativa isenta do custo de extração. No relatório, Latham defendeu que fosse feito um esforço: não o de deslocamento e reaproveitamento do material, mas o de viabilizar o reconhecimento de sua importância histórica, uma vez que aquela materialidade compunha uma síntese concreta do passado industrial inglês. Foi então que Latham passou a dar nome àquele complexo de xisto. Os montes, designados por ele como “esculturas de processo”, apareceram no documento com essa categorização a fim de incentivar sua preservação e de habilitar outra forma de percepção sobre eles; para que pudessem ser compreendidos como monumentos-síntese de uma herança pós-industrial. No mesmo relatório, quatro morros centrais receberam o nome de Niddrie Woman – indicação de uma marca antropomórfica na paisagem natural, referente ao corpo de uma mulher figurado na reunião dos amontoados. E, para que se efetivasse a conservação desses bings, seria preparado, em um primeiro momento, um projeto de sinalização via marcadores, degraus, quadros de avisos, juntamente com a preparação de informativos e registros históricos a serem dispostos no local. Mais que isso, para que se provocasse a ressignificação da relação já estabelecida entre as “esculturas de processo” e seu entorno imediato, a equipe que trabalhava com Latham acordou em acionar mecanismos legais para que elas pudessem ser registradas como um patrimônio histórico material. Barbara Steveni, em uma mesa de debate sobre a atuação do APG realizada mais recentemente no ano de 2012 na Raven Row, espaço artístico de Londres, comentou que havia certo tipo de percepção temporal, própria da compreensão filosófica de John Latham, que colidia com a lógica do procedimento burocrático do departamento escocês onde trabalhou. O princípio central da sua cosmologia idiossincrática – constituinte da estruturação teórica que acompanhou a produção do artista do início ao fim – formulava que qualquer empreendimento de reconceituação só poderia se dar na lida com o tempo, dinâmica esta em desacordo com a orientação de curto prazo da indústria, da mídia, dos governos e das instâncias decisórias da gestão pública, regidas pela vida útil parlamentar. A argumentação de Latham, em defesa do tempo da assimilação, do tempo da sedimentação e da acomodação de qualquer câmbio cultural, garantiu a ampliação do diálogo sobre o impacto que as formas legais de preservação das regiões de Midlothian e West Lothian, como patrimônio, poderiam gerar, a longo prazo, no imaginário social local. Talvez também por isso, o relatório por ele apresentado veio a costurar comparações visuais entre as áreas de acúmulo daqueles produtos residuais da indústria vitoriana com esculturas da cultura pré-histórica e com assentamentos neolíticos escoceses. A reverberação do debate que cercava a produção da earth art de vertente britânica, que se via em voga no momento, também lançou analogias à experimentação encabeçada por John Latham na paisagem escocesa; ainda que no seu caso, ao trabalhar com uma materialidade sintomática da ruína cultural moderna, o cenário natural surgisse mais como um terreno de visibilização de um composto de sobreposições históricas que como um palco para contemplação e espacialização de novos arranjos escultóricos. Para Craig Richardson (2012), foi a “arte conceitual escocesa quem ofereceu comparações mais gratificantes” (arte para a qual “a transformação e transmutação foram fundamentais”). Um dos exemplos por ele comentados foi a exposição Saltmarsh de Glen Onwin – inaugurada na nova Scottish Arts Council Gallery, em Edimburgo, logo antes da residência realizada por Latham no Scottish Office –, que evidenciou “a obsessão de Onwin por materiais elementares e pela temporalidade geológica”. Para o pesquisador, aproximar o trabalho de Latham ao de Gustav Metzger também era instrutivo, já que os bings poderiam se relacionar diretamente às investidas de transformação material e de um processo desintegrador, em correlação com as colunas de livros queimados de Skoob Towers, de meados da década de 1960, que tinham forte referência à arte pública e aos modos de se fazer “tanto o passado como o presente, na sua indivisibilidade, visíveis” (RICHARDSON, 2012). * * * No tempo, nem todos os montes alcançaram proteção patrimonial. Inicialmente, dois dos bings que formavam Niddrie Woman obtiveram garantias legais de presevação, como proposto, enquanto outros continuaram sob ameaça. No texto “Waste to Monument: John Latham’s Niddrie Woman” (2012), Richardson comenta que no início da década de 1980, o departamento federal voltou a solicitar a presença do artista, já afastado da instituição, para dar seguimento ao seu trabalho de reconhecimento e legalização patrimonial, o que tornou seu período de permanência e interação com a organização bastante mais prolongado do que inicialmente previsto. O que em princípio se daria em um ano, ao fim, transcorreu por algumas décadas a fio. A partir de então, Latham passou a defender publicamente a preservação de outros cinco bings – intitulados, então, de Five Sisters –, uma vez que empresas da construção civil tentavam usar o xisto como material para obras públicas. Foi só posteriormente que se conseguiu preservar o complexo dos cinco bings de acordo com a Lei de Monumentos Antigos e Áreas Arqueológicas. Com o esforço, adquiriu-se certa conscientização da importância histórico-social daquele território. Ainda assim, houve monte que, com o passar dos anos, foi inteiramente reutilizado para a pavimentação de rodovias ou requisitado para ser reaproveitado por outros interesses. Isso porque o debate que avaliava alternativas de capitalização daqueles recursos minerais, que levantava possibilidades de sua reciclagem e que media seu impacto ecológico fez emergir embates e posicionamentos diante das investidas do departamento escocês. No início dos anos 2000, profissionais das ciências e do meio ambiente chegaram a se manifestar em apoio à proteção patrimonial sugerida por Latham dos montes de lixo mineral. Compreendeu-se que a zona de dejetos parecia ter conformado um habitat único que valia a pena ser mantido e defendeu-se, no relatório “West Lothian Biodiversity Action Plan: Oil Shale Bings” (2005), da geóloga Barbra Harvie, que aqueles bings de xisto deram forma a um “habitat não encontrado em nenhum outro lugar na Grã-Bretanha ou na Europa Ocidental”, o que justificaria sua conservação como área de estudos e como “foco de identidade comunitária”. Afirmava-se, no relatório, que “o melhor manejo dos bings de xisto betuminoso era manejo algum”, uma vez que, por denotar uma “diversidade considerável de espécies de plantas” (HARVIE apud RICHARDSON, 2012) e um ambiente altamente mutável e propício para o crescimento de gramíneas e plantas raras, a área oferecia oportunidades de pesquisa para que agências de conservação pudessem preservar aquele patrimônio pós-industrial da ameaça do extrativismo. Embora acordasse com a importância do reconhecimento e manutenção daquele contexto por sua valia ambiental, a geóloga não deixou de criticar as estratégias de denominação utilizadas por Latham, cuja terminologia e atribuição de termos fixos não havia, segundo ela, contribuído com a comunicação de boa parte de seus pressupostos artísticos. Concepções como “escultura em processo” lhe pareciam imprecisas e prejudicavam a compreensão da proposta de ressignificação prática e conceitual dos montes enquanto monumento e patrimônio material. Para Richardson, o hermetismo que marcava o vocabulário do artista ficou também evidente no léxico da construção textual usada no relatório, cujo resultado foi uma abordagem “mordaz, pesada, estóica e carente de análise objetiva” (RICHARDSON, 2012). Derek Lyddon, que era o planejador-chefe da agência e um dos anfitriões responsáveis por acolher a propositiva do APG, também havia criticado a abstração comunicacional de Latham – e até pedido a Barbara Steveni que o substituísse por algum outro artista, já que “ninguém podia compreendê-lo” (STEVENI, 2012). O pedido (feito ainda antes do início do período de pesquisa junto aos montes de xisto) foi retirado assim que Lyddon viu o artista mobilizando discussões com os funcionários pela cantina do departamento, ativando impasses sobre os possíveis destinos da área de resíduos abandonada. Dali em diante o planejador-chefe passou a assimilar a atuação de Latham de outra maneira, reconhecendo seu papel como alguém que ativava reflexões sobre o estrato filosófico presente em meio aos encargos e incumbências rotineiras dos procedimentos do departamento e como alguém que já não operava mais por meio de uma habilidade técnica ou representativa, mas sim por capacidades analíticas, relacionais e dialógicas que se tornavam vetores da forma como sua atuação era percebida pelo entorno. A partir de então, Lyddon passou a identificar o lugar da “imaginação” e da “inteligência criativa”, próprias do processo artístico de Latham, como um ferramental de apoio para que “ideias, possibilidades e ações”, muitas vezes até então não “percebidas” ou “consideradas viáveis”, pudessem ser desencadeadas naquele contexto (LYDDON apud RICHARDSON, 2012). A despeito da falta de inteligibilidade do discurso de Latham, com o tempo, Derek Lyddon passou não só a apoiar seu desempenho, como a fundamentá-lo aos colegas do setor. No ano de 1975, em uma reunião de comitê na qual se questionou a finalidade da atuação da iniciativa do Artist Placement Group junto ao Scottish Office, Lyddon foi indagado se o artista residente deveria resolver os problemas do departamento. Em resposta, argumentou que a função do artista não era trazer soluções, mas “mostrar problemas que o departamento não sabia que existiam” (LYDDON apud RICHARDSON, 2012). A presença de vozes e participações que vinda de outros setores operacionais (como do desenvolvimento urbano, do meio ambiente ou patrimônio cultural, que, por sua vez, incorporavam à experiência do artista perspectivas de fora do seu próprio campo) constituíam o caráter polifônico do trabalho como um todo: polifonia essa retratada no composto de forças e interesses divergentes que rondavam o campo decisório que reconduzia o futuro dos bings. Não à toa, esses diálogos interdisciplinares acabavam agindo sobre a experiência, assinalando com maior vigor uma permeabilidade entre a arte e outras zonas de produção de conhecimento e exigindo, em consequência, maior atenção às correspondências que se davam entre o campo e as outras esferas sociais. Não obstante, essa espécie de transbordamento criava também outros formatos de aproximação entre o dito trabalho e espectadores do entorno; num modelo de acercamento bastante díspar àquele que se dá por quem acessa uma obra em visita ao museu. Aqueles que se envolviam com a rotina do artista (funcionários da agência, gestores públicos, chefes administrativos ou mesmo cientistas ou profissionais de outras áreas) acabavam dispondo de uma relação próxima com a proposta do gesto artístico; num tipo de contato diferente daquele que seria estabelecido por quem o acessasse posteriormente via documento, exibição ou qualquer outro formato de representação ou narração deslocado ao espaço do museu. Diferentemente da obra de arte em formato tradicional, o tipo de experiência proposta por APG, tomando como exemplo o caso da imersão de John Latham, assemelhava-se mais à noção de um evento (ou de um processo alargado) engendrado no próprio fluxo do tempo contínuo e em um espaço sem bordas, cujo contato direto pedia uma posição interna ao contexto no qual ele se dava. E essa conjuntura de interação com agentes de outras áreas e campos do saber acabava não só aproximando atores sociais naturalmente desassociados do meio da arte para junto da experiência, mas também se tornava, ela mesma, parte integrante do processo criativo – o que dava margem a um tipo de criação de trabalho em que a pessoa que o contempla e a pessoa que dele participa confundiam-se entre si.
Bibliografia
RICHARDSON, Craig. John Latham: Incidental Persone. In: Map Magazine, Londres. n. 11, 2007. Disponível em:<https://mapmagazine.co.uk/john-latham-incidental-person> Acesso em: 28 jul. 2022.______. Waste to Monument: John Latham’s Niddrie Woman Art & Environment. In: Tate Papers, Londres. n. 17, 2012. Disponível em:https://www.tate.org.uk/research/tate-papers/17/waste-to-monument-john-lathams-niddrie-woman> Acesso em: 13 jul. 2022.
RYCROFT, Simon. The Artist Placement Group: an archaeology of impact. In: Cultural Geographies, 26 (3). p. 289-304, 2019. Disponível em: <http://sro.sussex.ac.uk/id/eprint/80733/> Acesso em: 15 jul. 2022.
STEVENI, Barbara. STAUNTON, Claire; PHILLPOT, Clive; WADE, Gavin; HUDEK, Antony. APG and John Latham. Back to The Individual and the Organisation: Artist Placement Group 1966-79. Londres: Raven Row, 2012. Disponível em:http://www.ravenrow.org/events/apg_and_john_latham_/> Acesso em: 15 jul. 2022.