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Littoral: um polo de debate
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Manchester, Reino Unido (1994)
Texto de
Lola Fabres

Naquele ano, reuniram-se em Manchester gente de Chicago, de Brisbane, de Dusseldorf e até de Baguio, ainda que a maior parte viesse dos Estados Unidos ou fosse de lá mesmo, de alguma região da Grã-Bretanha. Havia historiadores e professores universitários, havia também alguns editores e curadores independentes, mas a grande maioria era membro de coletivos de artistas ou representantes de organizações e iniciativas (as chamadas artists-led initiatives) que vinham testando processos de trabalho que buscavam explorar zonas de interseção da arte com outros campos do conhecimento. A reunião se deu em setembro de 1994 e o motivo do encontro era a realização do simpósio internacional Littoral: New Zones for Critical Art Practice: artist’s projects in the context of social, environmental and cultural change, organizado pelos teóricos Ian Hunter e Celia Lerner, juntamente com o departamento de Artes Visuais da Universidade de Salford, em Manchester. O simpósio era o resultado de um mapeamento de experimentações artísticas que vinham lançando outras formas de se pensar o espaço público; embora, mais que nada, o encontro se dava a partir de um desejo de se formar conceitos e lentes de análises que pudessem dar conta desse perfil de produções, já que parte dele resvalava pela borda de gêneros já sedimentados no campo específico da arte contemporânea, como da performance, intervenção urbana, site especific ou mesmo do situacionismo e da land art. Ao longo dos quatro dias de evento, ouviu-se um tanto de gente envolvida com processos de trabalhos artísticos que vinham atrelando-se mais diretamente à esfera social e a instâncias de interação com profissionais de outros campos. Ouviu-se o pessoal do grupo Platform, coletivo londrino que vinha embaralhando desde os anos 1980 ações de arte, ativismo e pedagogia. Platform, emergiu junto com o avanço do thatcherismo e com a consequente redução do escopo de intervenção política do Estado nas esferas da economia e do bem-estar social e firmou interesse em problematizar os modos de produção energética e os impactos ecológicos gerados com a aceleração do desenvolvimento industrial. Still Waters, trabalho realizado pelo coletivo no início dos anos 1990, ganhava bastante destaque e visibilidade no campo da arte naquele momento. A proposta da ação havia sido a ativação de um mês de palestras, caminhadas e intervenções artísticas a fim de ressuscitar os rios Fleet, Walbrook, Effra e Wandle, cujos leitos já haviam sido soterrados junto com o sistema de esgoto subterrâneo que corria abaixo de avenidas do centro histórico londrino. O projeto, que diluía algum gesto estético com objetivos práticos que tentavam viabilizar outras possibilidades de energia renovável local, contou com o envolvimento de engenheiros e ativistas e recebeu apoio do Arts Council que começava, cada vez mais, a apostar em trabalhos que uniam artistas a pessoas de outras disciplinas e conhecimentos fora das artes. O encontro contou também com a participação do casal Harrison, dupla de artistas e professores da Universidade da Califórnia de São Diego. Tanto Newton quanto Hellen Mayer, ocupavam lugar de importância na discussão histórica recente que aproximava a disciplina artística do embate ambiental – e não à toa, o tema havia ganhado relevância nos debates do simpósio. Trabalhos como Art Park: Spoils’ Pile Reclamation (1976 - 1978), em que se buscou um processo de regeneração da pilha de entulhos gerados pela construção da Usina de Niágara, já vinha operando há mais tempo com a lógica da imersão contextual, do envolvimento comunitário e do formato de trabalho de longa duração. A proposta consistia na reivindicação da área pública, em desuso, que resguardava os espólios da construção da hidroelétrica, através da produção de instalações feitas com a colaboração de moradores e representantes de organizações comunitárias do entorno. The Lagoon Cycle (1974-1978) foi outro projeto da dupla que assumiu duração prolongada. A partir de um processo de estudo de campo e de anotação cartográfica, The Lagoon Cycle (do qual parte documental se encontra hoje no acervo do Centro Pompidou) se deu pela aproximação dos artistas com o ecossistema das lagoas e estuários da orla do Pacífico, a fim de explorar questões socioambientais relacionadas aos ecossistemas marinhos (como a poluição, o aumento do nível do mar, a perda de habitats naturais e o declínio da biodiversidade), junto dos povoados costeiros, de pesquisadores e organizações ligadas ao meio ambiente. O projeto aproximou registros da experiência vivida pela região litorânea com narrativas ficcionais acompanhadas de pinturas, diagramas e fotografias que resultaram em exibições instalativas e projetos editoriais. À época do simpósio, a dupla recém estruturava o chamado The Harrison Studio, criado no princípio dos anos 1990, através do qual se intensificou a produção de projetos de caráter interdisciplinar, em parceria com biólogos, urbanistas, ambientalistas e habitantes das áreas de atuação. Enquanto isso, Grant Kester, que já vinha escrevendo sobre questões de arte e ativismo desde meados da década de 1980, trazia ao debate sua análise sobre o trabalho Soul Shadows: Urban Warrior Myths (1993), da videomaker estadunidense Dawn Dedeaux. A proposta de Dedeaux (artista branca de família de classe alta da cidade de New Orleans), que partiu da sua interação com detentos de unidades prisionais de Louisiana, tomou forma a partir do desejo de superar seu medo de jovens negros, após ser assaltada em um bairro francês (KESTER, 2000). Ao se vincular com Wayne Hardy e seu irmão caçula Paul, figuras ativas da rede de tráfico de drogas de Nova Orleans, a artista começou a acompanhar a dupla, com câmera em punho, num processo que a levou, ao longo de alguns anos, a conduzir uma investigação junto a infratores integrantes do sistema carcerário e socioeducativo da cidade. Mas de acordo com Grant Kester, Dedeaux não deixava de posicionar esse grupo social como uma espécie de “veículo para sua própria terapia imersiva”. Ao ser adaptada a uma mostra instalativa, multimídia e itinerante que percorreu pelas cidades de New Orleans, Baltimore e Los Angeles, a pesquisa da artista ainda resultava numa representação homogeneizante daqueles jovens adolescentes envolvidos no projeto, por situá-los, na sala de exibição, como “cifras da criminalidade”. Nas palavras de Kester, “embora existissem muitas ‘vozes’ na instalação montada (ou mais propriamente uma cacofonia de fitas de áudio e vídeo que corria constantemente pela mostra), a ‘voz’ narrativa dominante no espaço expositivo era mesmo a de Dedeaux” (KESTER, 2000). Desse modo, o que parece ter sido um dos motores do debate levantado por Grant Kester no evento de Salford – mais do que a problematização de um projeto acomodado a acepções ainda discriminantes e estruturais dirigidas ao povo negro –, foi o escrutínio sobre o papel que o artista desempenhava, como figura cultural singularmente privilegiada, em processos artísticos vinculados à alteridade (KESTER, 2000). Ao longo daqueles dias de encontro, ouviu-se também Mary Jane Jacob, curadora norte-americana do projeto expositivo Places With a Past. Enraizada na história local de Charlestown, pequena cidade da Carolina do Sul, a exposição de 1991 vinha sendo referência àqueles que queriam pensar noções de território e localidade aplicadas ao exercício curatorial e a procedimentos investigativos na elaboração de trabalhos de caráter situado. Em Culture in Action, a curadora propôs aos artistas convidados que se envolvessem com diferentes comunidades de Chicago, em geral a partir de processos de pesquisa alocados em bairros que alertassem algum tipo de vulnerabilidade social. O projeto contou com o trabalho de Suzanne Lacy, outra participante presente no encontro em Manchester. No projeto curatorial de Mary Jane Jacob, Lacy havia realizado um movimento de resgate e de homenagem a mulheres cujo papel social fora importante na região de Chicago, ao fincar em pedras, dispostas pelas ruas da cidade, nomes como os da artista Joan Harris ou de Jane Adams, socióloga, ativista e assistente social. Em parceria com moradoras locais (responsáveis por ativar uma rede de reconhecimento e de popularização dessas biografias) Lacy ergueu cem monumentos de pedra calcária ao longo de um período de cinco meses; numa ação que culminou em um vídeo gravado com outras lideranças feministas. Antiga parceira de Judy Chicago, Suzanne Lacy havia também recentemente se envolvido no projeto The Roof is on Fire (1993-1994), em colaboração com Annice Jacoby e Chris Johnson. A ação estimulou encontros entre centenas de estudantes do ensino médio, reunidos no terraço de um edifício de estacionamento na cidade de Oakland, comprometidos com o debate sobre o problema racial. A interface entre adolescentes e professores (via troca discursiva) contribuiu para que ministrantes da rede de ensino atualizassem o modo de abordagem e de problematização de pautas ligadas à formação identitária (e seus embates) com o público mais jovem. A ação fazia parte de um projeto mais amplo, chamado The Oakland Projects (1991-2001), que consistia em uma série de dez anos que reunia projetos atrelados ao ativismo político e a performances situadas no espaço urbano, pensados por Lacy em parceria com o público juvenil da região de Oakland. No mesmo ano da realização do simpósio, a artista (também reitora da California College of Art and Crafts) lançava o livro Mapping the Terrain: New Genre Public Art. Lacy vinha se aproximando de projetos e experimentações similares às suas, a fim de investigá-las sob o ponto de vista teórico e de testar vocabulários que pudessem dar nome a esse complexo de linguagens que cada vez mais pareciam ignorar a relação convencional estabelecida entre a arte e seus espaços de mediação – e que encarava, por sua vez, a inserção de suas propositivas de forma distendida em meio à esfera social. O conceito, defendido por ela como um novo gênero para a arte pública (new gender of public art), estabelecia diálogo com outras proposições da época, como as de Martha Rosler (1991) ou W. J. T. Mitchell (1992), também responsáveis por publicar análises sobre essa aparente mudança de perspectiva sobre a ideia de espaço público na produção contemporânea. Além de dar base ao debate intelectual que vinha tentando enfatizar a necessidade de se pensar esse “público” num embate mais direto com seu aspecto sociopolítico, a expressão cunhada por Suzanne Lacy passou a ganhar espaço no campo acadêmico e chegou a acompanhar, posteriormente, a formatação de disciplinas e estruturas curriculares dedicadas ao tema no contexto norte-americano. O simpósio de Manchester também contou com a presença de representantes da Fireworks, galeria australiana recém-aberta que começava a chamar atenção no circuito de arte contemporânea de Brisban por incorporar produções de povos originários no seu grupo de artistas representados e por apostar na visibilização de projetos colaborativos que aproximassem a obra de artistas indígenas e não indígenas. Além de Fireworks, projetos como Whaur Extremes Meet (iniciativa de pesquisa em arte, arquitetura e meio ambiente de Glasgow), Projetto Cuspide (iniciativa artística, ecológica e cultural de Veneza), Coopérations (projeto de arte e edução de Luxemburgo voltado a grupos sociais com discapacidades), South Island Art Projects (iniciativa artística e colaborativa neozelandesa), BüroBert (coletivo de artistas e publicadores de Dusseldorf) e ArtLink (iniciativa irlandesa que aproximava o exercício artístico do desenvolvimento regional em Donegal), também compareceram no encontro. O simpósio ainda evidenciou algum esforço em mapear e incorporar a contribuição de profissionais do Sul Global, em quebra com a hegemonia do eixo euro-estadunidense, embora isso tenha se dado em menor quantidade. Foi o caso da participação do BAG (Baguio Artists Guild), coletivo formado por artistas filipinos da cidade Baguio, que retomavam a ideia de guilda como um modelo de trabalho onde o intercâmbio de técnicas e ideias era passado de geração em geração. Financiado por entidades civís, o coletivo surgiu logo após um terremoto que havia devastado a região. Com a formação de uma rede de apoio de organização de tarefas de auxílio e reconstrução, firmou-se um projeto comunitário de desenvolvimento cultural de formato aberto, já que qualquer um que quisesse poderia se somar, trazendo consigo seus saberes e repertórios específicos. No material institucional do simpósio, constava também descrito o comparecimento de “outras iniciativas artísticas dos Estados Unidos, Canada, Argentina, Inglaterra e Austrália” (HUNTER; LERNER, 1994). Sem maiores informações, e sem a identificação de nome de projeto, cidade ou membro representante, surgia implícito e timidamente a presença da América do Sul. Na verdade, o único representante da América Latina que havia ido à Inglaterra fora o projeto Ala Plástica: um coletivo argentino recém-formado, surgido no ano de 1991 junto à região da cidade de La Plata, cuja atuação centrava-se nas orlas e zonas costeiras do estuário do Rio da Prata (canal que previa acesso aos rios Paraná e Paraguai e que vinha sofrendo o impacto do fluxo hídrico de cargas, da atividade extrativista e agroexportadora responsável por afetar diretamente os ecossistemas e as vidas ribeirinhas do entorno). Resultante da junção do artista, advogado e ambientalista Alejandro Meitin, com o horticultor Rafael Santos e a arte-educadora Silvina Babich (jovens estudantes ligados à Universidade Nacional de La Plata), Ala Plástica vinha experimentando formas de entrecruzamento de suas atividades poéticas com discussões de política pública ligadas ao urbanismo e ao meio-ambiente. À época, o coletivo era ainda pouco conhecido fora do âmbito local. Fora Nora Zimermann, uma estudante argentina, então pesquisadora de pós-graduação na Inglaterra, quem mapeou a ação do coletivo enquanto participava de um estudo de levantamento de programas artísticos que explorassem pontos de convergência entre a arte e outras disciplinas. Vinculada ao programa de Artes Visuais de Salford, foi a própria pesquisadora, já atrelada às linhas de investigação de Hunter e Lerner, quem estabelecera a ponte de contato entre os membros do Ala Plástica e os coordenadores do simpósio. A partir de então, o coletivo sul-americano se tornaria parte de uma rede internacional de debate formada por pesquisadores, teóricos e artistas que o acompanharia em sua trajetória dali em diante e se manteria ativa até os dias atuais. Mobilizada no título do simpósio, a expressão littoral também passou a ser repercutida à época como um vocabulário em comum que tentava dar conta da complexidade estrutural do formato das práticas artísticas que vinham sendo ali apresentadas. Por sua natureza híbrida e intersticial (KESTER, 2013, p. 10) – ao reforçar a ideia de uma interface que incluía mais do que apenas uma “conversa” entre praticantes e coparticipantes (ou mais do que uma interação entre obra e público após seu processo de concepção), mas que remetia a um modelo de experimentação artística capaz de abrir canais para uma ideação compartilhada com representantes de outras áreas da prática social – o conceito littoral serviria em referência a projetos artísticos cuja dimensão discursiva interligava-se a outros debates, ideologias e narrativas para além de seu campo específico. Em suma, o termo aparecia com o objetivo de reconhecer “novos tipos de organizações pensadas por artistas” – iniciativas essas que buscavam um engajamento com questões do mundo real por meio de “processos colaborativos, prolongados e interdisciplinares” (HUNTER; LERNER, 1994), modulados em estratégias improvisadas a partir do convívio e comprometidas com práticas da vida social. Grant Kester também se debruçou sobre a problematização de uma arte dita “litorânea” nos anos seguintes ao encontro. Em “Dialogical Aesthetics: a Critical Framework For Littoral Art” (texto publicado na revista inglesa Variant, em 1999), Kester abordou a terminologia littoral a partir de seus atributos interdisciplinares e de sua capacidade de anunciar ações que operariam “entre discursos” (arte e ativismo) e “entre instituições” (entre a galeria e o centro comunitário, o bloco habitacional ou outras organizações civis). Bruce Barber, artista e educador neozelandês, Coordenador de Estudos de Intermídia da Universidade NSW, em Sydney, também presente no encontro de Salford, foi outro ator ativo na difusão do debate conceitual para além do contexto de Manchester. Tanto em “The Art of Giving”, texto de 1995 apresentado no Instituto Goethe, na Austrália, como em “Littoralist Art Practice and Communicative Action”, palestra apresentada em 1996 na Khyber Center for the Arts (na Nova Escócia), reforçou a definição de littoral como essa zona intermediária, cujo sentido simbólico apontava àqueles projetos que escapavam dos contextos convencionais do mundo da arte institucionalizado e se viam no limiar com o cotidiano civil (LEGER; BARBER, 2013). Ainda que o termo littoral tenha perdido fôlego na década subsequente, tornando-se hoje cada vez menos utilizado, viabilizou-se a partir da problematização do conceito, a importância em se olhar para esses novos modos de práxis a partir do “apagamento das fronteiras entre teorização, produção artística, agência curatorial e ensino” que eles mesmos anunciavam (LÉGER; BARBER, 2013, p. xi). Em especial, o esforço em se testar um denominador comum refletia uma vontade de se reconhecer alguns dos traços e das idiossincrasias que sinalizavam contrapontos entre as práticas debatidas no contexto do evento em relação a exercícios poéticos do passado. Porque mesmo que grande parte dos procedimentos artísticos contemporâneos compartilhados reproduzissem condicionamentos de experimentações históricas já consagradas, haviam neles outros modos operativos que careciam de análise. Alguns dos atributos ali em cena até nem eram novidade ao campo da arte. Questões como o empreendimento de estratégias de interação com o público ou mesmo a defesa por vezes explícita de interesses políticos eram, sem dúvida, herança das neovanguardas e até mesmo de antes delas. O envolvimento que muitos daqueles artistas demonstravam com incursões por âmbitos do espaço público ou inclusive por áreas rurais ou da periferia urbana, muitas vezes desabastecidas de instituições culturais, refletia desdobramentos de metodologias já introduzidas na história da arte há mais tempo. O próprio distanciamento da noção de arte enquanto materialidade objetual tampouco era incomum, tanto que a produção intelectual que olhou para o formato performático ou instalativo, para intervenções públicas ou mesmo para ações ligadas à crítica institucional de décadas anteriores, já constatava um transcurso rumo à desmaterialização, percebido no aumento de uma produção poética cuja ênfase processual tomava conta do objeto físico – tal como posto por Lucy Lippard e John Chandler em 1968. Havia sim na base das iniciativas artísticas participantes um levantamento de procedimentos de raiz conceitual; porém tratava-se de uma noção conceitual cada vez mais circunscrita à localidade, de modo que tais procedimentos, por sua vez, passavam a insistir, mais e mais, na “inseparabilidade entre obra e contexto” –, bem como num contexto cada vez menos inocente (KWON, 1997). Como disse Miwon Kwon, não foi só o objeto de arte que começou a sofrer, nesse período, sua própria desmaterialização, mas também o lugar (ou sítio), uma vez que ele passa a ser acionado por vieses econômicos, políticos ou epistemológicos, mais que somente por suas condições físicas e geográficas (KWON, 1997, p. 91). No entanto, todas aquelas proposições mapeadas que demarcavam em síntese uma conjuntura de proliferação de trabalhos artísticos emergentes em contextos comunitários específicos evidenciavam em comum não somente um formato aberto de articulação social com um público participante, mas se constituíam, muitas delas, através de dinâmicas nas quais a interação entre artistas e não artistas tornava-se ponto de partida de processos de concepção. E assim, invocavam um formato de troca colaborativa que se alargava ao longo do tempo. Nesse sentido, o que essas proposições pareciam reforçar, numa quebra com a experimentação histórica mais recente, era a profusão de um modelo de recepção estética não mais condicionado à lógica do instantâneo, mas que agora se prolongava tanto em métodos de longa duração, como no desejo de sua própria continuidade (KESTER, 2013, p. 14). De modo ainda incipiente, foi na tentativa de reconhecer e problematizar esses esgarçamentos da linguagem poética, seus espaços de visibilidade, seus limites e seus atores, que o simpósio Littoral: New Zones for Critical Art Practice teve seu peso em 1994, em especial por marcar o início da agitação de um debate que, como sabemos, viria a ganhar corpo e autorias bastante definidas no final dessa mesma década. O núcleo que se formou em Manchester foi não só precursor frente aos estudos de arte e teoria crítica interessados em investigar as questões contemporâneas que vinham aproximando o campo artístico da sua relação com a sociedade, como foi também um catalisador de redes hoje ainda ativas na produção prática e intelectual voltada ao tema. Aliás, é importante dizer que o polo de debate de Manchester se deu anteriormente às considerações de Claire Bishop, cuja tese apresentou uma linhagem da prática participativa contada através da lente crítica da vanguarda modernista; ou às contribuições de Rancière direcionadas à dimensão estética da política, às condições de sua inteligibilidade ou mesmo à teoria da “partilha do sensível”. O simpósio também se deu de modo precedente à análise de Hal Foster de 1995, responsável por reconhecer um exercício artístico mais recente ligado à alteridade; bem como ao cenário da discussão da estética relacional de Nicolás Bourriaud, lançada em 1998. Além do mais, é também a partir do final da década de 1990 que se vê a atualização de noções como as de site specific (KWON, 1997) ou o surgimento de termos como os de arte “contextual” (ARDENNE, 2002), “comunitária” (ESPOSITO, 1998) ou mesmo “participativa” (BISHOP, 2012) – que foram avisando a mobilização de terminologias associadas à interação social, à imersão comunitária e ao disparo de metodologias criativas voltadas à colaboração. Mais que nada, a propagação de termos que buscavam definir essas experiências que se voltavam ao par “arte-ativismo” não deixava de sugerir o interesse que o sistema da arte começou a demonstrar perante a elas, bem como um esforço por parte do campo literário específico em tentar compreendê-las. Mais que nada, o que o cenário de insurgência desses trabalhos nos apresenta, no seu caráter intersticial, é o alastramento de estratégias experimentais de descentralização da arte de uma esfera circunscrita; posto que, ao operarem relações de alteridade no reconhecimento da diferença dos coletivos e indivíduos envolvidos, práticas como essas aqui citadas foram aos poucos abrindo espaço para uma política de troca negociada entre as bases de mundos distintos.

Resumo: Em 1994, o departamento de Artes Visuais de Salford, universidade de Manchester, acolheu a realização do simpósio internacional Littoral: New Zones for Critical Art Practice. Além de professores universitários, editores e curadores independentes, o evento foi marcado pela presença de coletivos de artistas que começavam a chamar a atenção por explorar zonas de interseção entre a arte e outros campos do conhecimento. Organizado pelos pesquisadores Ian Hunter e Celia Lerner, o simpósio fora o resultado de um mapeamento de experimentações artísticas que vinham lançando outras formas de ocupar o espaço público e se tornou um catalisador de redes até hoje ativas no debate sobre colaboração e interdisciplinaridade nas artes. Desse modo, o ensaio busca apontar a relevância e o caráter incipiente desse polo de debate, reconhecendo a presença das reflexões por ele disparadas no cenário atual.

imagens ©Neverthesame

Publicação:

 

texto apresentado no Encontro Geopolíticas institucionais: conexões e redes nas artes visuais, com organização de Renata Gomes Cardoso, 2023 

 

Bibliografia:

 

ARDENNE, Paul. Un Art contextuel. Paris: Flammarion, 2002.

BARBER, Bruce. Littoral Art and Communicative Action. Illinois: Common Ground Publishing LLC, 2013.

BISHOP, Claire. Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship. Londres: Verso, 2012.

FOSTER, Hal. O retorno do real: a vangaurda no final do século XX. São Paulo: Ubu, 2014.

ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origine e destino della comunità. Torino: Einaudi, 1998.

HUNTER, Ian; LERNER, Celia. Material institucional do simpósio Littoral: New Zones for Critical Art Practice: artist’s projects in the context of social, environmental, and cultural change. Manchester: Universidade de Salford, 1994.

KESTER, Grant. Conversations Pieces: Community and communication in modern art. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2013.______. Dialogical Aesthetics: A Critical Framework For Littoral Art.Variant, 2000. Disponível em:<https://www.variant.org.uk/9texts/KesterSupplement.html>

Acesso em: 21 jun. 2022.

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ROSLER, Martha; WALLIS, Brian (org.). If You Lived Here: the City in Art, Theory and Social Activism. Nova York: Dia Art Foundation, 1991.

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